- Aka! - gritou a Aia, já exasperada: - Já chega. Se não sais daí, rebento a porta.
«Aí» era um closet, meio armário, meio quarto de vestir.
Mas não foi preciso: a maçaneta de porcelana girou tranquila, com se nunca tivesse estado trancada.
As roupas lá estavam, levemente agitadas por uma brisa que vinha da parede de fundo, de uma porta antes encoberta por paineis de madeira.
Num hotel antigo, tantas vezes adaptado, com tantas crescenças, nada daquilo era para admirar.
Aka era um diabinho esperto, uma verdadeira Peri quando crescesse, sabia-se lá por onde andava agora.
A Aia não era timorata e ainda recordava os livros da Enid Blyton, cheios de passagens secretas. Um pouco embaraçada pela longa capa, desceu a escadinha íngreme. Acordes metálicos de guitarra enchiam o ar quando chegou a um corredor largo e atapetado, uma longa curva para a direita, lado onde estavam as portas numeradas.
- Parecem camarotes de um teatro - pensou a Aia. E entrou.
Vultos indecisos na penumbra voltaram-se para lhe dar as boas-vindas.
- Também foste abusada, irmã? - perguntou alguém num murmúrio. - Podes tirar o niqab. Sabes, aqui ninguém precisa de ter vergonha e muito menos sentimentos de culpa.
A Aia inclinou-se para espreitar o palco.
Por um instante pareceu-lhe reconhecer Aka na cantora magra e de cabelos rapados, mas, claro, não podia ser ela.
- É a Sinhead O'Connor - explicou a mesma voz murmurada. - Veio cantar o War, sabes, aquele cântico em que ela grita: «child abuse, yeah!»
- Nós estamos aqui para a proteger se for preciso - disse outra voz.
- Who'll dig his grave? - perguntou a Aia, com um sorriso melancólico.
- I, with my pick and shovel, I'll dig her grave.
Voltaram-se para ver quem tinha falado, mas era apenas mais um vulto na sombra.
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3 comentários:
sensacional!
só depois de fazer este comentário li o que acrescentaste ao anterior. sensacional? mangnífico!!!
Ana, pode perfeitamente acontecer que uma historinha da Aka vá crescendo - ou encolhendo - sem muito respeito pela cronologia. Quer dizer que ela não se rala nada de voltar atrás e dizer outra coisa completamente diferente. É o direito a contradizer-se, não é?
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