sábado, fevereiro 14, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XII)

- Psst! Miúda! Avia aí os trocos.
Aka olhou para ele, sem amenidade.
Era branco e não tinha o ar muito limpo.
Mas ali, sentado numa caixa, com um copo e um livro, não parecia ameaçador.
- Estás a ler o quê? - perguntou ela, sentando-se nos calcanhares em frente dele.
- Tens alguma coisa a ver com isso?
Aka mostrou-lhe uma nota de dez euros.
- Os trocos, lembras-te? O pedinte és tu, não sou eu.
- Só tens isso?
- Se o livro valer a pena pode ser que eu volte... E pode ser que tu me mostres outros livros e pode ser que vá havendo mais uns trocos...
- Ah bom. Queres fazer de mim um investidor, é?
- Não. Um mestre? O meu preceptor dizia que temos de escolher os nossos mestres. Mas não és obrigado...
- E em em que é que eu me pareço com um mestre?
Aka pensou.
- Em nada, acho eu. Achas que é por isso?
Ficou a olhar para ela, muito tempo até que mostrou a capa do livro.
- Ouve. É um gajo muito antigo, chamado Gide, André Gide, que já ninguém lê. Chama-se La porte étroite. Começa assim:
Outros poderiam fazer um romance; mas, eu consumi todas as minhas forças e virtudes a viver a história que vou contar...
Passou uma série de páginas e voltou a ler:
- A minha alma está hoje ligeira e alegre como um passarinho que tivesse feito o seu ninho no céu. É hoje que ele deve vir; sinto-o, sei-o; quisera gritá-lo a todos ... Não posso esconder por mais tempo a minha alegria... Interessa-te?
Aka fez que sim com a cabeça.
- Quem é ela? E quem é que vai chegar?
- Ela? Como é que sabes que é uma ela? Pode ser um ele. Ou um maricas. Ou um marciano. Os marcianos não têm sexo, sabias?
- Não. E tu, já viste muitos?
- Espertinha! Vendo-te o livro por esses dez euros. Mas com uma condição. Aceitas?
- Qual?
Ele percorreu as folhas do livro e rasgou as últimas duas ou três.
- Juras sobre o Corão que nunca tentarás saber o fim da história que ele vai contar?
- Não sou muçulmana. Mas tenho muito respeito pelo Corão. Juro.
- Toma. Deves-me dez euros.
Dois dias passaram.
Aka não lia muito depressa em caracteres latinos.
Acompanhada pela Aia e seguida à distância pelo Mahamoud, Aka voltou à ilha de Saint Louis.
O pórtico em obras lá estava.
Mas o ocupante era outro: gordo, a barba por fazer, a garrafa do vinho tinto.
- Le pettit con? Vieram buscá-lo, les flics ou les bleus, des comme ça.
Falou para a Aia que se mantinha distante:
- Vou-z-auriez-pa-z-une piéce, vous, la grand-dame? J'ai jamais toué personne, hê?
Mais não sabia.
O «pettite tête» não «pertencia», era um passante, não entrava na festa la fête com toda a gente.
- Ele era toc-toc. -concluiu e estendeu o boné para encerrar a conversa.
- Porque não compras outro exemplar desse livro e não o lês até ao fim? - sugeriu a Aia.- Esse, de qualquer modo, tens de o deitar fora, está sebento.
- Fiz um juramento - respondeu Aka.
E não explicou mais.
-
Ou:
Dois dias passaram.
Aka não lia muito depressa da esquerda para a direita.
O pórtico em obras lá estava, com o sem abrigo encolhido no seu anoraque enxovalhado.
Mas sem livro.
Parecia ter-se ido embora e esquecido ali o corpo.
Da boca aberta escorria um pequeno fio de baba.
Aka, ajoelhada ao seu lado, ficou uns minutos quieta.
- Talvez tenha de ser assim com os meus mestres - murmurou.
Não sabia como chamar uma ambulância, mas, do outro lado do telemóvel alguém havia de saber.

Sem comentários: