quinta-feira, abril 23, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XVI)


"The Virgin started from her seat, & with a shriek"

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- Como te chamas, jóia?, perguntou a Cartomante.

- Não sei, respondeu Aka. Tenho mais de mil nomes.

- Como Nosso Senhor, hem? Não és modesta. E como te chamava a tua mãe, além de minha bonequinha fofa?

- A Mãe foi morta quando eu tinha cinco meses, dizem. Mas a minha primeira ama, a que me deu de mamar, chamava-me Diniza.

- A tua Mãe foi morta? E por quem, minha preciosa?

Aka abanou a cabeça.

- Não lhe posso dizer.

- A mim podes dizer tudo, pequena. Mas não queres, não é assim? Bom! Diniza? Diniza, num dialecto muito antigo que aprendi num sonho, queria dizer «filho de Deus".

- No meu também. Mas «din» ou «djin» junto com «iza», que quer dizer pequenino, é o que se usa para os enjeitados, sabes? Cria de Deus, filhote. Alguém que foi deixado à porta do Pai mais velho.

- Hum-hum? E depois?

- Depois o Pai mais velho decide se a criança merece viver e dá-a a criar a uma ama, a uma mulher que esteja a amamentar. Ou decide que não... A mim podem ter decidido que eu vivesse.

- Que história triste, pequena. Tens a certeza do que contas?

- Não, sabe, «dinisa» também se usa para uma rapariguinha endiabrada, um diabinho em forma de gente. A diferença é que os letrados ocidentais escrevem com «s». Nós usamos a escrita antiga, que não é só fonética.

- E tu, eras um desses diabinhos?

- Ainda sou.

- Seja Diniza, então! Com «z» ou com «s», tanto faz.

Soletrou e foi espalhando cartas em polígono à medida que recitava as letras.

- Ui! Que violência, minha querida. Vês? Esta carta é o teu pai.

Colocou em rápida sucessão mais seis cartas ao lado das anteriores.

- Sim, vejo-te com uma coroa de rainha, diamantes, safiras... e uma espada sobre a tua cabeça. Pés descalços, sobre as silvas. Quem és tu, Diniza? Com esse rosto tapado deves ser muçulmana... Não, espera... és de uma seita que te condenou... que interessante, Deniza: estás condenada à morte! Não acredito que tenhas poderes suficientes para fazer mentir as cartas. Só o Demónio o consegue.

- Eu sou um diabinho, lembra-se?

- Mostra-me as tuas mãos! Consegue-se fazer mentir todo o corpo. Hás-de aprender isso um dia, talvez quando casares, se viveres até lá. Mas, não te esqueças! As linhas das mãos, nunca mentem porque a mentira fica gravada para sempre.

Aka estendeu ambas as mãos, com as palmas viradas para cima e fechou os olhos:

- Why cannot the Ear be closed to its own destruction? - perguntou ela. - Não se preocupe: foi qualquer coisa que aprendi nas aulas de Inglês. Um preto qualquer, como eu.

- Modesta, como sempre, hem? Eu também estudei inglês, rapariga. O William Black só era preto de nome. E tu nem issso. E agora cala-te. Quero ver o que dizem estas linhas.

7 comentários:

Anónimo disse...

Interessante o avolumar de processos de miscigenação que vão passando pela formação de Aka. Miscigenação e viagem ao encontro dos deuses e demónios que nos habitam (sabendo ou não sabendo, querendo ou não querendo). Assim nos fazemos nos encontros e desencontros connosco e com os outros.
Boa malha, Tacci.
jad

Graza disse...

Esta Aka está a merecer o prelo.

Anónimo disse...

Um dia destes vou entrar nesta dos blogues. Por enquanto não tenho tempo nem paciência, mas gostava de falar contigo. Acho que gostava não sei bem.

Carochices

tacci disse...

Jad:
O que me interessa nesta personagem é perceber o que resta para lá da contradição - ou, dito de outra maneira: o que conseguirá Aka guardar quando esgotar os mil nomes.
Um abraço.

tacci disse...

Graza:
Se souber de um, assim escondidinho ao dobrar de uma esquina, avise.
Bem haja.

tacci disse...

Anónima/o das carochices:
Arranja-se sempre tempo para beber um copo e conversar uma beca.
Diga coisas.

Anónimo disse...

Caro Tacci, o que interessa ao autor sai-lhe da caneta, o que me interessa como leitor do teu Livro de Aka são as portas que ela pode abrir ou, pelo menos, insinuar, ou, como alguns dizem, que mundos nascem na escrita disponibilizada aos leitores. Quanto aos mil nomes continuarei a aguardar o que restará para lá do nome, do último nome. Vale a pena a espera!
Abraço
jad