Há dias, quando li que a Maria João Pires, talvez num dia em que acordou com os pés de fora, queria abdicar da nacionalidade portuguesa e tornar-se brasileira - ou checalòturca, pouco importa - comentei cá para comigo:
- Bom, é o mais sagrado dos seus direitos.
Arranjei um papelinho e, à mesa do café, desatei a escrever os nomes das pessoas que eu admiro.
A lista - digo-o com um orgulho a roçar a arrogância - coube nas costas de um talão do multibanco e sobrou espaço. E tinha muito, muito poucos portugueses.
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Eu sei que o defeito é meu.
Sobretudo quando penso que a melhor parte do escasso rol já nos bateu com a porta na cara.
O Jacques Brel, por exemplo.
Ou a Piaff.
Ou o Bertrand Russel.
Ou o Albert Camus.
Ou o Zé Afonso.
Ou o Prévert.
Mas ninguém me mereceu a mais pequena ponta de consideração por ser português, por ser espanhol, por ser turco ou grego.
Não me interessam essas imaginárias linhas postas ali, onde «alguém», a golpes de espada ou a tiros de metralhadora, determinou que uma criança passava a ser chamada judia ou palestiniana.
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Sempre achei de uma inaudita crueldade que esses «alguéns» tivessem dito à Maria Helena Vieira da Silva que passava a ser apátrida.
E que ainda hoje o possam dizer a um guineense que trabalha, que paga contribuições ou que, simplesmente, vive.
Quantas vezes me apeteceu gritar bem alto: «Se é isto o Portugal que vocês querem, fiquem com ele. Eu vou-me embora.»?
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Mas vou ficando.
"Talvez porque não dou a ninguém o direito de me expulsar da minha terra", escrevo. "Talvez por simples cobardia que encontra nas ideias grandiloquentes as melhores desculpas", continuo, já com o recurso a um segundo talão do multibanco e uma pontinha de vaidade no estilo.
E escrevo ainda:
- «Matai-vos uns aos outros», recomendou o Jorge Reis ao partir para Paris. E, quem sabe, talvez não seja por acaso que a "mulher-cão" da britânica Paula Rêgo tenha o feitio de corpo e a cara de uma portuguesa.
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Se a Maria João Pires quiser ir-se embora como tantos outros se foram, que dizer se não que é o mais sagrado dos seus direitos?
E se for mudando de ideias e for ficando, que dizer também, se não que é outro dos seus direitos não menos sagrados?
19 comentários:
está no seu direito de se ir embora, não estará no direito de colocar as culpas no estado português num projecto que não soube gerir
Certamente não será só pelo insucesso do "projecto que não soube gerir" que ela se quer ir embora. Aliás, ela quer mudar de nacionalidade...pretendendo mostrar que está farta de pertencer a uma lixeira.
Apesar de eu não simpatizar particularmente com a Maria João Pires, e de, francamente, não ligar grande coisa a ser "isto ou aquilo" em matéria de nacionalidade, quantas vezes já me apeteceu gritar bem alto que "não me apetece continuar a ser isto"? Cá continuo, claro está, até porque, como não sou a Maria João Pires, ninguém me ligaria nenhuma...e não ia servir para mais nada senão para me dar trabalho...
Não estou totalmente por dentro da questão de Belgais e tenho por isso alguma dificuldade em dar opinião. Culpa minha porque não curei de informar-me totalmente. Sei apenas que era um projecto interessante que falhou. Mas tenho sobre a questão da nacionalidade que ela levantou, outro entendimento.
Porque não encaro o problema da nacionalidade da mesma forma que o Tacci, embora respeite que haja quem se sinta tão cidadão do Mundo que não caiba nestas barreiras artificiais que são as fronteiras, faz-me confusão que estas mudanças se façam assim por questões de arrufos ou retaliação. Aconteceu o mesmo a Saramago - e não questiono as razões - num processo quase indêntico e de repente, depois de estar do outro lado, já não se importava de fazer parte do mesmo espaço se isto tudo se chamasse pelo mesmo nome, que podia ser Ibéria ou outra coisa parecida. Admito que as mudanças de nacionalidade se façam por algumas razões, mas nem todas, as que se operam por causa do futebol como quem enche chouriços, são um exemplo. Entendo isto da mesma forma que é decidirmos pertencer à familia dos nossos vizinhos do lado, só porque o diálogo é dificil entre portas. Não acho que isto seja, também para o próprio, uma forma honrosa de lhes bater à porta.
Anita:
A maria João Pires é uma pianista, uma das grandes pianistas vivas; não tem de saber gerir coisa nenhuma. Para isso tem o estado gente de sobra.
O que lhe compete, o que ela se propunha, é ensinar música de acordo com um método que ela julga bom.
Infelizmente, os ministérios estão cheios de auto-suficientes que sabem sempre mais seja do que fôr.
É o sítio onde vivemos.
Amélia
Sê bem vinda.
Eu, por mim, simpatizo imenso com a M. João Pires (talvez por ser muito bonita, sobretudo quando toca), mas suponho que é isso mesmo o que ela sente:
Tipo "se o Dantas é português, eu quero ser espanhol", como disse o Almada.
E Portugal podia ser um sítio bem mais simpático se não estivesse infectado de Dantas, não podia?
Um abraço.
Grazza:
Sabe? Não tenho a certeza de que o projecto de Belgais tenha falhado.
Daqui a uns anos pode ser que haja uma geração Belgais,feita de crianças que por lá estudaram, de jovens músicos que participaram em ateliers, que de algum modo alargaram horizontes. Mesmo que a escola tivesse de fechar já amanhã, provavelmente a sua influência continuaria ainda por umas boas décadas.
Mas, claro, a nossa questão é outra.
Confesso que não sou um patriota, até porque "pátria" é um conceito harmónio, estica e encolhe de acordo com o momento político.
Quando era pequenino ensinaram-me demasiadas coisas: desde o Hino Nacional a que Angola era nossa e que os nossos primeiros reis eram reis de Portugal e dos Algarves de aquém e além mar. O Al Gharb era outro reino, mas Portugal era do Minho a Timor...
E depois, lá vêm os Super Dragões por aí baixo, ou os No Name Boys por aí acima, porque uns são do Norte, carago, e os outros não passam de mouros.
No mundo dos negócios e da ciência todos falam inglês. Até o Senhor Primeiro Ministro, embora seja mais inglês técnico.
E, Graza, às vezes damos connosco a perguntar:
Mas afinal onde é que eu pertenço?
À minha terra, sem dúvida, às vinhas, às casas, às árvores, ao bandos de corvos, às águias que passam lá muito em cima, ao texugo que adora ervilhas... Se me permite o péssimo-logismo, não sou um patriota, mas sou um terreota. E à minha família, também pertenço, claro. Teria de emigrar se ela tivesse emigrado, sentiria saudades da minha terra como toda a gente.
Mas identifico-me muito pouco com totalidades abstractas, sobretudo quando são usadas como formas de domínio.
Mas isso são contos muito largos. Como o mundo não deve acabar já, ficam para depois.
Um abraço.
mas porque raio tem o estado de gerir um projecto privado? Também quero então um subsídio para fazer obras naquela magnífica saca abandonada em caxias e criar a minha livraria-galeria
Tacci. Quando escrevi "um projecto que falhou" foi no sentido da viabilidade, não no dos seus objectivos culturais, naturalmente.
Concordo consigo que pode existir uma plasticidade no conceito “pátria” perigosa, e também eu durante muito tempo o tive com muita reserva, porque sabemos como nos foi imposto e quem normalmente dele faz o indevido uso. Essa imposição fez mossa até ao nível dos simbolos da Nação.
Talvez saiba que me envolvi um pouco na última candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República, não só por ser o lutador que conhecemos como por achar que Soares não conseguiria e muito menos suportar a ideia de ver Cavaco a representar-me. Por entre várias afinidades que me ligavam àquela candidatura, uma foi de alguma forma a limpeza que eu já vinha fazendo no conceito “Pátria” e que Alegre ajudava a operar, também na sua poesia. Acho que perdi o medo à palavra e não tenho receio de transformar esse chamamento telúrico de “saudades da minha terra” em qualquer coisa de mais abstrato. È mais ou menos como reformular o Almada: “Se o Dantas é português foi obra de algum espanhol” :)
Mas estamos de acordo: este país fede de Dantas!
Um abraço
Anita:
Não devemos estar a falar das mesmas coisas.
Da forma como eu entendo o estado, ele tem a obrigação - porque é para isso que eu lhe pago e tu também - de nos dar o melhor em, pelo menos, meia dúzia de campos: a saúde e a educação são dois deles, fundamentais, a meu ver.
De saúde percebes tu. De educação tenho eu as minhas opiniões.
E o estado é obrigado a ter peritos que lhe digam, sim, sim, o projecto da Maria João Pires é bom para as gerações que aí vêm e o do Zé da Esquina não presta. Tal como tem de os ter, por exemplo, para avaliar as bolsas de investigação ou formação que concede, para manter unversidades da maior qualidade possível na área da saúde. Não tem de se substituir aos investigadores, nem aos centros de investigação, sejam eles públicos ou privados.
Isso, para mim, é secundário. O estado não passa de uma central de compras que deve procurar no mercado o melhor produto para o cidadão.
E, se calhar a ser ele o proprietário do laboratório ou da escola (por ter sido ele o investidor, por exemplo), não deve armar-se em patrão e pensar que pode ser ele a determinar como deve ou não ser feito: o estado deve comportar-se meramente como cliente racional que procura o melhor produto, seja ao preço que tiver de ser.
Repara que eu não tenho a certeza de que o meu dinheiro (que o estado me leva em impostos) seja bem gerido. Não exijo, por isso à Maria João Pires que seja boa gestora: acho que se ela desperdiça o meu dinheiro, desperdiça-o de uma forma muito mais bonita do que a «tropa» a comprar submarinos ou o ministério do «não sei-quê» a comprar bancos falidos.
É o meu ponto de vista e admito que haja outros: o estado, se acha que Belgais não sabe gerir bem o dinheiro que recebe por um serviço efectivamente prestado, ou seja, o serviço inegavelmente bom é demasiado caro, pode negociar, propor outro modelo de gestão, uma parceria.
E colocar uma equipe ao serviço de um projecto que nos interessa.O que não pode é acabar com o projecto só porque alguém entende de música e não é grande gestor.
E Anita:
Arranca com o teu projecto.
Uma livraria em Caxias ou noutro lado qualquer, que fechasse para lá da meia-noite, com um barzinho e umas tostas mistas do género das do Snob, mais uma sala de música, tem o meu inteiro apoio.
Pede um subsídio à câmara. Acampa no meio da Marginal com um cartaz e faz greve da fome.
Luta.
É o que tem feito a Maria João Pires.
Um abraço.
Graza:
Gostava de ter uma maior tolerância às palavras. É uma pena, mas acho as ideologias se apoderam delas, contaminam-nas e estragam-nas de tal modo que se torna difícil restituí-las ao primitivo significado.
Depois, tudo se torna muito confuso:
Gostaria de que a Galiza, por exemplo, fosse também a minha Pátria, mesmo se pertence a outro Estado; e sinto muito mais afinidades com um Valle-Inclan do que com o Joaquim Paço-de-Arcos.
Como muitas outras coisas, as religiões, por exemplo, que tendem a tornar-se quase individuais, também as pátrias deviam ser como que à la carte:
"Eu quero pertencer à cultura do Gaudi, do Siza e da Paula Rego, por exemplo".
E pronto: a Pátria deixava de ser um acidente de nascimento e passava a ser como que uma impressão digital.
Não era óptimo?
Claro que era óptimo Tacci, mas duvido que alguma vez as sociedades do futuro atinjam essa perfeição. Não me parece que possamos limpar da nossa matriz, apesar de toda a evolução da humanidade, essa marca ou resquício primário de identificação e pertença a um grupo. É que isso não depende só da nossa vontade de evasão mas também do reconhecimento e aceitação pelos outros, que como se sabe transferem de geração em geração os mecanismos de reconhecimento e num limite, o estatuto de pária pode bem ser menos aquilo que procuramos.
Anita e Tacci
Não se esqueçam de me avisar quando esse maravilhoso projecto avançar em Caxias! Com o barzinho e as tostas!...
Boa noite a todos.
Tenho estado a assistir ao debate com vontade de participar e, em simultâneo, à espera das novas argumentações que iam sendo produzidas.
Penso compreender as perspectivas defendidas. Contudo, se centrarmos a reflexão no conceito de pátria, em si mesmo, isto é, ligado à sua etimologia, verificamos que a sua filiação em pater latina e grega indicia uma ligação que está para além do simples arbítrio subjectivo. Neste sentido, a pertença a um sítio, a uma cultura e especialmente a uma língua marca-nos de uma forma matricial (de mater-mãe; mátria) e indelével. Podemos gostar ou não dos nossos progenitores mas nascemos deles e não seríamos sem eles. Creio passar-se o mesmo com pátria: podemos gostar ou não mas têmo-la colada à pele, melhor. à cultura que nos faz sentirmo-nos confortavelmente em casa quando ouvimos a nossa língua num qualquer canto do mundo. Por isso, no meu entender, podemos mudar de país (esse sim, arbitrário e artificial) mas não conseguiremos apagar a matriz (e a patriz) que nos identifica como nação e como povo com os quais se fazem as pátrias.
Mesmo contra nossa vontade.
Sobre Belgais a minha perspectiva aproxima-se da de Tacci: à semelhança do que acontece com os atletas de alta competição, que têm facilidades na sua vida académica e nas candidaturas ao ensino superior, também com Belgais teremos que ser nós como povo a decidir se é importante continuar a ter atletas de alta competição que ganhem medalhas olímpicas ou outras, apesar de poderem entrar em qualquer curso superior independentemente da nota de candidatura e se queremos continuar a patrocinar um centro cultural longe de Berardo e com caminhos velhos para lá chegar. A minha escolha é, evidentemente, sim!
Abraço
jad
Se pudesse teria escrito como o jad escreveu sobre pátria...
Graza e Jad:
Desculpem responder a ambos conjuntamente, mas creio que têm posições muito próximas a este respeito.
Claro que estou de acordo convosco.
Usamos expressões como «língua materna» ou «língua de Camões», que nos ajudam a circunscrever a nossa pertença. E «pátria» significa unicamente terra dos nossos pais, da nossa tribo, o nosso totem.
Até aqui, nada a objectar, se tivermos sempre presente que se trata de uma escolha.
Para dar um exemplo:
Numa região bem delimitada como aquela a que chamamos Portugal, a probabilidade de sermos todos descendentes tanto do D. Nuno Álvares como da D. Leonor Teles é altíssima: mas, se considerarmos traidora uma e heróico o outro (como fazia a história salazarista), estamos a escolher os «pais» que queremos, a definir uma certa «pátria» por oposição a outras possíveis.
Imaginem, também podíamos, como faz o Professor Moisés Espírito Santo, privilegiar as nossas origens semitas, judaicas em grande parte e, mais remotamente, fenícias. Pedir a adesão a Israel seria consequente com essa escolha e não seria menos patriota do que qualquer outra.
O critério da língua materna, o preferido do Pessoa, só tem, quanto a mim, um inconveniente: eu teria de ser angolano, brasileiro, galego, ou timorense tanto quanto português.
Pelo contrário, terra, eu tenho. Falo o português com um sotaque diferente do alfacinha, do tripeiro, do beirão.
E como a língua materna da Maria João Pires é o piano e o piano é uma linguagem universal, a pobre senhora ficava sem pátria.
(Nota aqui entre nós: os pianistas também tocam com sotaque, estou em crer. Mas, se calhar, chamam-lhe escola, ou qualquer outra coisa.)
Um abraço para ambos.
Graza, só um esclarecimento:
O projecto da Ana é só dela.
Eu, como abelhudo que sou, é que não me farto de dar palpites.
Dizes bem Tacci, o meu sonho-projecto é só meu (ah o Congo a chamar por mim, v~es porqu~e eu que detesto o calor?), mas há pessoas a poder contribuir nele e os teus desenhos fariam (farão) parte da inauguração. estou numa de optimismo
Eu, que não conheço a Ana, que não conheço "aquela magnífica casa abandonada em caxias", que não conheço o projecto, estou já contaminado com o entusiasmo e faço votos, muitos votos, para que se cumpram os desejos. Boa!
jad
Nunca estive tão de acordo contigo. ...No post e nos comentários.
Com o devido e merecido respeito por todos, não resisto a deixar umas notas (soltas):
A fundação, estabeleceu um protocolo com o estado tendo em conta o relevo do projecto para o país. Ao que parece, o estado acabou por lá pôr à volta de 2 milhões de euros, em tranches que -fruto da malfadada burocracia-, desde o início se revelaram desatempadas...
Entretanto, só o estádio do Algarve, custou 30 milhões 647 mil e 923, euros...
O tribunal de contas, ainda este mês, apresentou um relatório em que dá conta que, a "Empresa Jornal da Madeira", detida pelo governo regional da Madeira, tinha em 2007, prejuízos acumulados que rondavam os 33 milhões de euros...
Não vou continuar.
Lembro "O jogo das contas de vidro" e, de como a música poderia contribuir para um Mundo melhor...
Só um conselho à Ana (espero que não me leve a mal a ousadia): Se tens um projecto de interesse público, arrojado, e principalmente se for genial... se não tiveres capital para o financiar integralmente e "contornar" a borucracia... não te metas em parcerias com o estado!... È que ele há Dantas por todo o lado e, não se vão cansar de te perguntar pelo papel! Aquele papel...
Uivomania:
Parece ter-se gerado aqui algum consenso sobre o valor de Belgais: de facto, dois milhões de euros em tantos anos, não é nenhum excesso de generosidade da parte do estado e o projecto vale-os bem.
Quanto à noção de pátria (e de patriotismo), em calhando, também lá havemos de chegar.
Um abraço.
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