Charles Foucault
1858-1916
Aka parou.
- Pardon?
- Esse livro. Gostaste?
Era um homenzinho moreno, mal vestido, com um sorriso de miúdo.
- Conheço-te? - perguntou ela.
Fez um gesto para sossegar o guarda-costas.
- Se calhar não. Mas eu vi-te anteontem. Vinhas do Jeu de Boules, ias sendo atropelada por causa desse livrinho.
Aka sorriu.
Aka sorriu.
- Sim, o Mahamoud segurou-me a tempo.
- Não sei quem é esse Mahamoud, a menos que seja aquele tractor de desaterro que está aí atrás de ti. Mas quem te segurou fui eu.
- Tens a certeza?
- Não tenho muitas no mundo, confesso-te. Percebes, sou um nadinha como o São Tomé, mais assim para o céptico. Mas essa certeza julgo que sim.
Aka hesitou.
- Então devo-te um agradecimento - decidiu. - Mesmo se é muito inconveniente que uma mulher da minha tribo deva a vida a um homem de outra. Que te posso oferecer como recompensa?
- Não tem importância, esquece.
- Posso parecer-te arrogante, mas deixa que seja eu a avaliar a importância ou não da minha vida. Que te posso oferecer? Pede o que quiseres.
- Arrogância por arrogância: agradeço-te, mas não quero nada. Ou sim: oferece-me uma resposta. O que é que uma miúda muçulmana estará a ler com tanto interesse que ia morrendo por causa disso? Ia para te perguntar anteontem, mas esse quase guarda-fato que está aí olhou-me de tal maneira que nem tive coragem.
Aka não estava habituada a gente faladora.
Abanou a cabeça confusa.
- Quase o quê?
- Quase guarda-fato. São os dois do mesmo tamanho; a diferença é que num guarda-fato, a roupa pendura-se do lado de dentro, não tinhas reparado? Mas o que é que uma miúda...
- Não se deve emendar um mais velho, desculpa, mas não sou muçulmana.
- Eu também não, deixa lá. Mas o que é que uma miúda que não é muçulmana anda a ler há dois dias pelas ruas desta cosmopolita urbe?
Aka estendeu o livro.
- Ofereço-te.
- Poemas. Não conheço este Jerôme Margot. Que tem de especial?
- Teres-me salvo deu-te o direito de me interrogares... que de outro modo não terias.
Ficou a olhá-la um longo momento, com o livro na mão.
- Ofendes-te com facilidade - disse ele cautelosamente, a sombra do sorriso ingénuo a voltar-lhe aos olhos. - Ou, a lo mejor, sou eu quem não está a ser correcto.
Fez outra pausa.
- Mas não te estava a interrogar. Ou talvez sim, mas só como um aprendiz interroga um mestre que a sorte lhe pôs no caminho. E sei o que vais dizer, mas a vida já me ensinou que os mestres não têm idade, acreditas?
Aka baixou os olhos.
- O que eu ando à procura é de uma centelha de grandeza. Julguei entrevê-la aí, nesse livro, mas o autor está morto. Não haverá ninguém vivo que uma rapariga da minha idade possa admirar e respeitar?
- Deus. Deus está vivo.
- Eu sei. Mas é tão raro!
- Muito, muito raro. Mas temos de aceitar a condição humana, não temos?
Fez um sorriso mais largo e, com um «até um dia, obrigado pelo livro» juntou-se à multidão que não deixara de os acotovelar.
Aka continuou parada a ver-lhe as costas curvadas e o passo vivo.
- Não, não temos - murmurou ela, a pensar ainda na condição humana. - Se uma coisa nos sufoca, não temos de a aceitar. Eu, pelo menos, não tenho de aceitar nada.
7 comentários:
Olá!
1º os meus parabéns pelas suas aguarelas que, aliás, já conhecia através de uma amiga que teve um blog (pequenos nadas).
2º Voltarei, com certeza.
:)))
Ema
Muito obrigado pela sua visita.
O «pequenos nadas» era um blog muito interessante e tenho pena de que já não esteja disponível.
Um sorriso para si também e volte sempre.
Claro que voltarei.
:))
Já tinha saudades (não me esqueço de as tratar bem, como proclamas) da Aka. Boa, Tacci, continuas em forma.
Abraço
Feliz Natal, tacci.
Abraço
Abraço, Jad. E tens razão:
tenho de tratar melhor a pobre Aka.
MC:
Obrigado.
Feliz Natal para si também.
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