Do que vos quero falar, ou, dado que o Portugal, caramba! se tem vindo a transformar em mais um blogue do eu, o que eu quereria perceber, é:
Porque havemos de obedecer a uma ordem?
Mas, claro, tenho de começar por algum sítio e, portanto, aquele estranho acontecimento passado lá para os lados de St. Margarida, ou de Tancos, serve perfeitamente.
Lembram-se?
Eram umas sete da manhã, vem um condutor na sua carrinha, tinha andado a distribuir jornais e, a meio da estrada, a ocupar-lhe a faixa, ia um pelotão de futuros paraquedistas vestidos daquela cor chamada verde-tropa, escolhida justamente para não dar nas vistas. Cumpriu a sua função. O condutor não os viu realmente - ou só demasiado tarde.
Acidente, dezasseis atropelados, três muito graves.
Não interessa se houve ou não culpados, se foram castigados, se alguém indemnizou as vítimas ou se está tudo perdido na burocracia de um ex-tribunal militar.
Claro, as notícias falaram de um carro desgovernado, um motorista adormecido ao volante ou cansado ou qualquer outra coisa que justificasse o desastre. Tudo menos o óbvio: a tropa está-se nas tintas para as leis quando não lhe apetece cumpri-las. No caso eram as do trânsito, poderiam ser outras.
Não que a tropa não cultive a obediência.
Tem Nepes, tem Erredêémes, tem as suas bíblias e faz gala em que tudo seja by the book.
Excepto se aos sargentos e oficiais outra coisa não ocorrer, mas isso é outra conversa. Relevante é que não tenha havido muito mais informações sobre as necessárias sequelas do acidente. A obediência e o silêncio andam frequentemente juntos. A cegueira segue-as de muito perto.
2.
A obediência na tropa é engraçada: parece ter sido feita de propósito para nos mostrar a que ponto pode chegar a alienação ou, para ser claro, até que ponto alguém pode prescindir da sua própria vontade, dos seus instintos até, se a palavra tiver algum conteúdo.
A que outro conceito poderíamos recorrer para explicar, por exemplo, as cargas de baioneta nos assaltos às trincheiras inimigas, quando um general francês ou alemão, que importa, sacrificava três mil homens para recuperar cem ou duzentos metros da terra de ninguém, uma aldeia arrasada e deserta, um pedaço de bosque onde, de novo seria preciso cavar trincheiras, instalar metralhadoras?
Lembram-se do Hans Castorp, o jovem doente (mas de quê?) que desceu do sanatório, na encosta da Montanha Mágica, a cinco mil pés de altitude? Vista de lá de cima, a pátria «assemelhava-se a um formigueiro em pânico». E o Hans mergulhou no vale e depois num batalhão académico:
"Eis o nosso amigo, eis Hans Castrop! Já de longe o reconhecemos (...) Arde, ensopado pela chuva como os outros. Corre, os pés trôpegos, agarrando a espingarda. Vejam, pisou a mão de um camarada caído, a sua bota ferrada afundou essa mão no solo lamacento, crivado de estilhaços. E todavia é ele!"
(Thomas Mann, A montanha mágica)
O que levará alguém a seguir o seu oficial, o seu pendão, o seu clarim até à morte? Ou, se preferirmos, o que terá levado os carcereiros de Auschwitz, os Eichmann deste mundo a obedecer às ordens que alegam terem-lhes sido dadas?
9 comentários:
E todavia é ele!"
Uma das coisas que mais me custou admitir no serviço militar foi essa usurpação no nome que me representava, para me colarem o número que correspondia uma parte do colectivo. Nas guerras mais sérias que se fizeram ao pé de mim - a minha não foi tão séria quanto isso - esse processo foi ainda mais intenso, para resultar no cenário real.
Não sei deixar assim a quente uma resposta com mais estrutura, mas alguma parte deve passar por esse mecanismo da captura do "indivíduo".
Mas esta seria só uma ínfima parte da resposta e apenas no capítulo da Guerra. Faltariam ainda os outros capítulos possíveis: respostas maiores do que este bom texto, Tacci.
pois eu gosto muito de "Blogues do Eu".
É o dever, Tacci, é o dever, assumido com o poder categórico da obediência sem margem (ou à margem) da razão que obrigaria a perguntar "Porquè?" E, se isso acontecesse, lá se ia o poder do general que, como sabes e eu lembro-me de ter lido quando estivemos na Areia Branca, se funda na obediência do soldado. Se este não assumisse essa obediência como um dever, o general deixaria de ter o dever de mandar.
Abraço, Tacci.
À espera do que há-de seguir-se.
Graza
Há outras obediências quase tão más como a militar: a do jovem que tem de venerar o incompetente do seu chefe, por exemplo, a da jovem que tem de aguentar os avanços do encarregado e por aí fora.
Hei-de tentar dizer alguma coisa também sobre elas, mas é um tema muito árduo e nem sempre consigo clarificar o que me vai passando pela cabeça.
Um abraço e obrigado pelo seu comentário.
JASG
Também não tenho nada contra os "blogues do eu". Mas, às vezes, sabe, sinto-me um tanto pretencioso, a falar demasiado de mim próprio como se isso interessasse alguma coisa ao respeitável público.´
O que vale é que os blogues não são de leitura obrigatória.
Um abraço.
Apareça sempre.
Jad:
Não sei se alguma vez deixamos de ter a obrigação de "mandar", de dar as instrucções que julgarmos correctas.
Se pensarmos, por exemplo, nas guerras de resistência, a França, a Itália ou a Grécia, por exemplo, talvez o caso mude de figura.
O general, se calhar também tem essa obrigação. O soldado é que tem de pensar se deve ou não acolher a ordem.
Por isso é que este tema é tão difícil.
Um abraço.
Havemos de continuar esta discussão.
Espero que sim.
De qualquer maneira, o guarda que o prisioneiro que sabe que está preso injustamente não se põe o problema ético. Não pode pôr-se o problema. Caso contrário, deixaria de ser guarda. Ou porque não suportaria a angústia resultante da contraditória dimensão do dever que, por um lado, o obrigaria a deixar sair os presos que reconhecia inocentes; por outro, o obrigaria a mantê-los presos. Ou porque era expulso depois de ser ele próprio acusado e condenado por ter cumprido (segudo ele próprio) e não cumprido (segundo os chefes ou o estado) o dever.
Abraço
É o dilema de Antígona, não é?
Para ela tratava-se da oposição entre as suas obrigações tribais e a obediência ao estado.
Para o guarda prisional trata-se da oposição entre a sua razão e, novamente, a obediência ao estado.
Mas não se imagina um carcereiro-carrasco de Auschewitz kanteano, pois não?
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