Todos os dias, logo pela manhã ou já a dobrar para a tarde, ou às horas que forem, repetimos os mesmos gestos, já viram?
Calçamos uma meia em cada pé, admitindo que ainda temos os dois da praxe; comemos umas tantas refeições, ouvimos as mensagens no telemóvel; compramos o jornal; ligamos a televisão, vemos os prós e os contras; amamos os prós quando são nossos, odiamos os contras quando são os outros. À socapa, fazemos zap e espreitamos um ou outro dos canais porno com que, gentilmente, a meo ou a zon mais próxima nos quiseram perverter.
Se nos perguntarmos, dizemos que é assim mesmo. Mas já fizemos as perguntas todas há tanto tempo e as respostas sempre imitaram as respostas, de que vale estar sempre a perguntar?
Lemos os mails, alguém nos mandou uma anedota sobre a ministra da educação; navegamos na net ao acaso.
Dormimos. Ao lado da esposa que já foi exaltante.
Sonhamos, mas não nos lembramos com quê.
Acordamos.
Acordamos.
Repetimos.
Tomamos o café, tomamos o duche.
Calçamos meias lavadas. Convém.
Talvez outros sapatos.
Guiamos o carro. Não estamos sós, toda a gente vem connosco pela mesma estrada.
Trabalhamos.
Vamos beber um copo com o que chamarmos amigos. Falamos do mesmo que eles.
Esquecemo-nos de ler o jornal que trazia notícias do Haiti. Espreitamos outra vez o canal porno.
A boa esposa já dorme.
Se lermos umas páginas para adormecer também, há quem tenha hábitos desses, e se o livro que nos veio à mão tiver sido um qualquer Deleuse, poderemos tropeçar em conceitos como modulação, ou como ritornelo. E podemos começar a compreender que chegámos enfim, à sociedade de controlo. Os numerosos microchips dizem por que portagens passámos, que contas pagámos, a ADSE ou a Medis sabem que remédios tomamos os bancos sabem o que querem saber.
Mas depressa largamos esse livro: não haverá por aí algum Dan Brown, alguma Margarida Rebelo Pinto, algum imitador da receita de Flemming e do seu 007?
Sim, porque ai de nós se não formos bons imitadores: a receita para fazer um herói ou um bom cidadão existe, está sempre em actualização.
Lembram-se do Reinaldo Ferreira?
Agite-se um pendão.
Segue o teu chefe. O secretário-geral do teu partido. O teu colega com mais sucesso. Aqueles para quem as meninas mais bonitas sorriem.
Já nem são precisas as certezas irracionais. O senso comum basta.
Servem-nos mortos, claro.
4 comentários:
Carneiros mais carneiros que os carneiros.
Vou-me pirar antes que entre em depressão. Os mortos também se deprimem?
Saudações do Marreta.
Se os mortos podem deprimir?
Acho que não.
Conheces os versos do Camilo Pessanha:
«E eu sob a terra firma,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.»
Mas o problema mesmo é: porque é que os carneiros são carneiros? Não te pires antes de responder, ok?
porque alguém os programou carneiros?
Anita:
A carneirice, ou, se preferirmos, o mecanismo da imitação, é altamente favorável à sobrevivência. As raposinhas aprendem a caçar imitando a mãe; nós quando éramos miúdos brincavamos a imitar os mais crescidos; o provérbio «em Roma sê romano», é isso que aconselha: integra-te no grupo a que tiveres de pertencer, imita-o.
Mas claro: isso torna-se problema quando a imitação deixa de ser um mecanismo de aprendizagem e passa a ser um mecanismo de submissão.
Há-de haver uma fronteira entre as duas coisas.
Onde estará?
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