Tinha doze anos, mais mês menos mês e foi vítima de um fenómeno que agora se descobriu. Até já tem nome em inglês, é uma coisa séria, subiu à categoria dos maremotos que são tsunamis e tremores de terra. Chama-se bullying.
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O meu dicionário começa por explicar que o «bully» é o «hired ruffian, blusterer, browbeater», ou seja: o rufião encartado, o vociferador, o ameaçador.
Também se aplica, em Eton, ao que parece, àquelas molhadas que se formam no rugby a que se chama também a mêlée e em que o desgraçado que sai lá de baixo, ou tem o caparro de um lutador de wrestling ou sai feito num oito.
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O bully, portanto, é um atormentador. Mais: regra geral não age sozinho. Exibe-se para o seu grupo e, em caso de resistência do atormentado, não hesita em socorrer-se da ajuda dos outros todos. A mêlée, nem que mais não seja pelo número, raramente perde.
Se a memória me não falha, está aqui tudo o que falta para fazer delinquentes juvenis.
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Claro, se assaltarem uma loja, se roubarem carros, chama-se a polícia, exigem-se medidas: atentou contra o património. É grave.
O cidadão comum indigna-se, exclama que «só neste país!», pergunta o que faz a polícia.
Os ministros anunciarão reforços às forças da ordem, o policiamento de proximidade, o bacalhau a pataco e que a semana vai ter nove dias.
Um ou outro desses jovens delinquentes será detido com grande estardalhaço e confiado mais ou menos em segredo á guarda dos mesmos tutores que não souberam socializá-lo.
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Se o mesmo jovem se dedicar a tiranizar os mais novos, os mais pequenos, se lhes roubar o lanche, as canetas, os trocos, se com grande valentia distribuir porrada, se rasgar os livros de estudo, se insultar e bater, tudo bem, ninguém sabe, toda a gente estava a olhar para outro lado.
Os mais pequenos sofrem, mas não dizem nada, porque é o medo que guarda a vinha. Os pais não sabem porque os filhos não falam. Os professores não têm meios e os conselhos directivos garantem que na escola não foi.
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Mas foi.
Não interessa se foi para lá do virar das esquinas, longe da vista e longe do coração, que a agressão se concretizou: foi na escola que se estabeleceram os domínios, se designaram as vítimas, se iniciaram as perseguições: primeiro com os risinhos, o desdém, logo o insulto, o empurrão, o pequeno roubo "a brincar", o estojo dos lápis atirado para longe, a mochila escondida.
Se as coisas forem mais longe, mais longe serão: fora da escola, longe das testemunhas.
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Mas, como é um fenómeno, pronto, então está tudo bem. É como os ritos de iniciação, um homem não é homem se não partir sete vezes a cabeça, se não pegar um garraio de caras, se não for à tropa.
Os jornais escrevem em grandes títulos que um "estudo académico conclui que 13,5% dos estudantes do secundário são alvo de agressões sistemáticas". 13,5 é um número significativo: é como dizer-se que uma fatia importante dos adolescentes perdem a virgindade antes dos quinze anos, ou que a incidência das borbulhas faz parte do crescimento. O Dito bullying também.
Até há estudos académicos. A honra está salva.
Os reitores das universidades, quando recebem estes jovens delinquentes, já podem aceitar a existência de rituais de iniciação, de praxes violentas, do que for.
Se alguém faz perguntas, todos negam:
Que está garantido o direito a declarar-se contra a praxe, dizem.
Que sempre foi assim e que não tem havido queixas.
Não, não tem havido queixas.
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Uma vez por outra morre um Leandro Filipe.
- Não pode ser! - gritam-nos logo. - As nossas instituições são perfeitas. Foi um azar! A culpa foi dele de certeza.
Talvez, talvez tenha sido. E minha, também.
Também se aplica, em Eton, ao que parece, àquelas molhadas que se formam no rugby a que se chama também a mêlée e em que o desgraçado que sai lá de baixo, ou tem o caparro de um lutador de wrestling ou sai feito num oito.
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O bully, portanto, é um atormentador. Mais: regra geral não age sozinho. Exibe-se para o seu grupo e, em caso de resistência do atormentado, não hesita em socorrer-se da ajuda dos outros todos. A mêlée, nem que mais não seja pelo número, raramente perde.
Se a memória me não falha, está aqui tudo o que falta para fazer delinquentes juvenis.
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Claro, se assaltarem uma loja, se roubarem carros, chama-se a polícia, exigem-se medidas: atentou contra o património. É grave.
O cidadão comum indigna-se, exclama que «só neste país!», pergunta o que faz a polícia.
Os ministros anunciarão reforços às forças da ordem, o policiamento de proximidade, o bacalhau a pataco e que a semana vai ter nove dias.
Um ou outro desses jovens delinquentes será detido com grande estardalhaço e confiado mais ou menos em segredo á guarda dos mesmos tutores que não souberam socializá-lo.
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Se o mesmo jovem se dedicar a tiranizar os mais novos, os mais pequenos, se lhes roubar o lanche, as canetas, os trocos, se com grande valentia distribuir porrada, se rasgar os livros de estudo, se insultar e bater, tudo bem, ninguém sabe, toda a gente estava a olhar para outro lado.
Os mais pequenos sofrem, mas não dizem nada, porque é o medo que guarda a vinha. Os pais não sabem porque os filhos não falam. Os professores não têm meios e os conselhos directivos garantem que na escola não foi.
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Mas foi.
Não interessa se foi para lá do virar das esquinas, longe da vista e longe do coração, que a agressão se concretizou: foi na escola que se estabeleceram os domínios, se designaram as vítimas, se iniciaram as perseguições: primeiro com os risinhos, o desdém, logo o insulto, o empurrão, o pequeno roubo "a brincar", o estojo dos lápis atirado para longe, a mochila escondida.
Se as coisas forem mais longe, mais longe serão: fora da escola, longe das testemunhas.
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Mas, como é um fenómeno, pronto, então está tudo bem. É como os ritos de iniciação, um homem não é homem se não partir sete vezes a cabeça, se não pegar um garraio de caras, se não for à tropa.
Os jornais escrevem em grandes títulos que um "estudo académico conclui que 13,5% dos estudantes do secundário são alvo de agressões sistemáticas". 13,5 é um número significativo: é como dizer-se que uma fatia importante dos adolescentes perdem a virgindade antes dos quinze anos, ou que a incidência das borbulhas faz parte do crescimento. O Dito bullying também.
Até há estudos académicos. A honra está salva.
Os reitores das universidades, quando recebem estes jovens delinquentes, já podem aceitar a existência de rituais de iniciação, de praxes violentas, do que for.
Se alguém faz perguntas, todos negam:
Que está garantido o direito a declarar-se contra a praxe, dizem.
Que sempre foi assim e que não tem havido queixas.
Não, não tem havido queixas.
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Uma vez por outra morre um Leandro Filipe.
- Não pode ser! - gritam-nos logo. - As nossas instituições são perfeitas. Foi um azar! A culpa foi dele de certeza.
Talvez, talvez tenha sido. E minha, também.
24 comentários:
A Escola Mata.
Ou deixa morrer.
Alunos, professores e funcionários.
A indiferença mata...
A escola não será o único campo para esta cultura, mas concordo que é dos principais, e precisamente aquele onde mais se devia curar para que não crescesse.
Se apenas dizes que no mundo se passam coisas más, os que no mundo estão bem instalados, dão-te uma palmadinha nas costas e dizem: «Pois, amigo, é capaz de ter razão.» Se lhes colocas uma bomba debaixo do carro, dizem: «Não é assim que se melhora o mundo.» E prendem-te. (Porque eles tudo sabem e tudo podem.) De modo que, depois de teres apontado um mal, ficas a consolar-te: «A culpa também é minha.»
Badesse
Excelente texto!
Parabéns, Tacci!
Um abraço.
Muitíssimo bem escrito.
Passei três horas na Loja do Cidadão nos Restauradores.
É uma nojeira, a palavra que mais lá se ouve é "eles", nunca ouvi dizer "nós".
Sou de direita e com tristeza verifico que os chamados blogs de esquerda (especialmente o número um, o Arrastão)não deram a mínima atenção a este assunto.
Adiamos gestos que nunca deviamos adiar, Tacci. Por isso reeditei um post
Brilhante, Tacci.
Comungo da tua indignação: os filhos e os alunos não nascem crescidos, somos nós que os fazemos crescidos. E isso lança-nos o peso do dever e a consequente inevitabilidade da responsabilidade. E isso é um fardo demasiado pesado para quem se distrai a olhar para a janela em vez de olhar para o espelho.
Abraço.
É incompreensível este complexo de condenação dos agressores! Damos por nós nestas análises de auto-punição, quando seria mais sensato irmos à raiz do problema. Há uma questão em que a Direita tem alguma razão, é na forma como aborda complexos destes: não os alimenta. Sei que isto pode ser polémico, mas a palavra deve ser dada a quem já se confrontou com dramas destes. No meu tempo havia a luta normal pelas lideranças, não isto... Para quê por em riscos milhares de jovens desprotegidos que podem ficar com mazelas psicológicas quando estão a construir a sua auto-imagem, tolerando a impunidade só por receio de intervir? Por mim: vassourada nas escolas!
Tacci
Levei o desenho para um post na Pérola de Cultura. Passa por lá.
Beijinho.
Cheguei aqui guiada pela Lelé e saio daqui impressionada com o teu texto... na mouche!
Gente:
Já devia ter agradecido os vossos comentários há que tempos.
Desculpem todo este atraso, sim?
Ema, como é que se combate a indiferença?
Só conheço uma forma: é encurtando a distância afectiva às pessoas, criando escolas mais pequenas, turmas menores, professores e funcionários menos sobrecarregados.
Quem sabe se não faria a diferença?
O problema é que sai caro e o dinheiro é preciso para as autoestradas, não é?
Um abraço.
Badesse:
Tens razão. É um dilema terrífico.
Não me apetece ir preso e muito menos as palmadinhas nas costas.
Uma bomba debaixo do carro, já sabes, não ponho porque, no momento de explodir, podia ir a passar um cãozito pulguento e sarnoso e que não merecia tão triste fim. E isto para não falar do sem-abrigo que costuma pedir esmola nessa rua.
Por outro lado, as palmadinhas dos bem instalados não as quero: sujavam-me o casaco. (Aliás, não vêm muitos a este blog, acredita.)
Diz-me: o que hei-de fazer?
Lelé:
Obrigado e um abraço também para ti.
Fado Alexandrino:
Tu dizes-te de direita, mas eu já li no teu blog muita coisa que passava bem por ser de esquerda.
Mas não te rales: diz de ti mesmo que és um gajo decente e tenho a certeza de que toda a gente concorda.
Um abraço.
Por vezes os caminhos para as escolas são difíceis, sobretudo quando sabemos que as lições vão ser penosas.
Mas não te culpes, Anita.
São os pais quem tem a obrigação de estar atentos, não é?
Nós, por vezes, já vamos atrasados para o combóio e para as nossas próprias aulas.
Um abraço.
Jad:
Sabes?
Acho que ninguém nos ensinou a distinguir as janelas dos espelhos.
Às vezes, olhamos pela janela e vêmo-nos passar, numa pele alheia, mas com os nossos defeitos estampados por todo o lado.
Outras vezes julgamos estar a olhar a nossa própria imagem e só vemos como estamos parecidos com os modelos que trazemos na cabeça.
Conhecer-se a si próprio, se calhar, é um trabalho colectivo, mas exigia de todos nós a sinceridade e a honestidade: o contrário exacto dos mansos costumes.
Se fôssemos capazes disso, na volta já tínhamos criado um movimento, ou uma religião, ou sei lá o quê.
Pode ser que, um dia, lá cheguemos.
Um abraço, Zé.
Graza:
Nós que somos da geração Spock, que já fomos criados com muito menos rigor, parece que não soubemos transmitir o essencial do que aprendemos. Revoltámo-nos contra as reguadas, contra a palmatória, mas não encontrámos ainda um substituto eficiente.
Nas escolinhas infantis, as educadoras usam a exclusão como arma:
«O Tiaguinho não se porta bem e a São já não gosta dele... Agora já não brinca com os outros meninos!»
Claro que é uma forma de crueldade, claro que é eficiente, mas como se aplica a um mais crescido, mesmo que fosse desejável?
Expulsão?
Mas para onde? Para outra escola? Não se estaria a chutar o problema de um lado para o outro?
Para casas de correcção?
Não creio que se possa voltar tão atrás no tempo.
A solução, digo eu, se houver, está no encurtamento das distâncias afectivas, como sugeri à Ema.
Mas que vai ter de se arranjar uma solução, isso vai.
Abraço.
Lelé, fizeste muito bem.
O desenhinho ficou muito favorecido no teu blog.
Outro abraço.
Anabela:
Seja bem vinda.
Volte muitas vezes, sim?
Concordo em parte, Tacci. A minha escola é assim pequena e coisa e tal, e...
eu acho que o caminho passa pela educação dos afectos.passa por uma "reconstrução" interior de cada pessoa perante si e os outros. é que quando a escola, é pequena ainda dói mais a indiferença. vá e agora falo da indiferença nos adultos...porque em relação aos alunos, na minha escola, cumpre-se, na generalidade, os mínimos. Há só uns que sobressaem pela positiva...A solidariedade ainda é uma palavra desconhecida para muita gente.
És capaz de ter razão, Tacci. Contudo, se ninguém nos ensinou a distinguir as janelas dos espelhos aprendemos mimetizando o que fomos vendo fazer: o sucesso vemo-lo no espelho, o fracasso justificamo-lo à janela. É o que os miudos vão vendo em casa e fora dela.
Embrulhamo-nos num narcisismo complacente connosco e com os nossos, incapaz de reconhecer os limites e defeitos próprios. O problema parece-me entendível deste ponto de vista: se fazemos asneira porque faz parte da nossa imperfeita natureza e não a reconhecemos quem responsabilizaremos pelas nossas falhas? Os outros, os que vemos passar pela janela.
Sem contestar a tua observação competente, a que me habituei há muitos anos, creio que nos temos vindo a esvaziar de nós com tanto olharmos para fora. Também creio que a TV tem uma parte muito grande de responsabilidade nisso.
Claro que andamos todos aos papeis tentando encontrar uma ponta de ordem neste desnorte colectivo.
De uma coisa, porém, penso estar seguro: nada de bom poderemos esperar se fugirmos para a janela quando não nos agrada o que o espelho nos mostra . Sobretudo, qundo se trata dos filhos e, já agora, dos alunos.
Abraço
Ema:
Houve uma altura em que, em muitos dos estágios, os professores eram avaliados também pela empatia com os alunos, o que implicava aquilo a que eu chamo proximidade afectiva.
Ainda estará em uso?
Mas, obviamente, uma escola aqui e outra ali, não chegam para modificar o clima de desalento no ensino - e no resto da sociedade muito menos.
O que se pode fazer é tentar manter a chamazinha acesa para quem precisar dela um dia.
Jad:
Não posso estar mais de acordo. Devíamos ter sido ensinados a vermo-nos a nós próprios sem dó nem piedade.
O problema está em que o relativismo snob do Oscar Wild se tornou banalidade nos nossos dias: quando ele escreve que "a verdade raras vezes é pura e nunca é simples. Muito aborrecida seria a vida moderna, se fosse uma coisa ou outra...", toda a gente encolhe os ombros e responde "claro, claro, e então?"
Tens razão, Tacci. Contudo, dou por mim a pensar se não será a complexidade da vida e do mundo que contamina a verdade e a torna tão, digamos, “conjectural”. A resposta imediata é evidentemente sim. O sim arrasta, porém, consigo o perigo relativista que referes. Mas, tanto quanto consigo entender, isso não acontecerá só quando o espelho nos mostra apenas as virtudes, quero dizer, apenas a certeza narcísica e, no limite, solipsista do valor absoluto da verdade que se espelha em nós?
Esse será possivelmente o espelho mais comum no mercado. Mas há outros mais sérios que nos mostram as virtudes e os defeitos. São esses que nos fazem humanos: livres, solidários, tolerantes, respeitáveis porque respeitadores. E aí, caríssimo Tacci, não há snobismo que resista a uma boa dose de “douta ignorância”, que, sabemo-lo bem, apenas poderemos encontrá-lo olhando-nos de frente, olhos nos olhos.
É que admitir que estamos errados é demasiado violento para quem se admira no espelho das suas certezas e espreita pela janela os erros dos outros.
Quem nos dera que fossem poucos!... Na educação e fora dela.
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