segunda-feira, março 29, 2010

«Basta-me viver»?


Carlos Vale Ferraz,
Basta-me viver,
Edição da Casa das Letras,
Março de 2010, Alfragide







-
É aborrecido, mas estou a ficar sem autores favoritos.
Sabem como é: aqueles que, descoberto um livro, nós partimos imediatamente em duas opostas direcções: uma para o passado, é espantoso, ela (ou ele, claro) já tinha publicado tudo isto e eu nem o vi?
Ou vi, mas não liguei nenhuma?
Momento óptimo para uma fúria consumista e zás!
De repente ficamos com leitura para umas semanas.
Aconteceu-me com o Mário de Carvalho, por exemplo, creio já ter falado nisso algures. E com o Paulo Castilho e com o João Aguiar.
E claro, depois de lido o passado, ficamos à espera do futuro - que, diga-se, ao contrário dos actos dos ministros e das más notícias em geral, leva muito tempo a chegar.
Os autores, por motivos lá deles, parecem ter arrumado a caneta, e só pegam no computador para jogar free cell.
Eu, cansado de esperar, no meio da livraria, grito indignado:
- Mas o que é eles andam a fazer, caramba?
-
Carlos Vale Ferraz não pertencia a este grupo. Lido o Nó Cego, não me precipitei à procura de outras obras. Erro meu, quem sabe?
Há uns dias, porém, enquanto esperava por uma amiga e a fazer horas numa livraria, dei com Basta-me viver. A contra-capa parecia feita de propósito para pôr a milhas o mais pintado: "Uma história de amor absoluto de duas mães pelos seus filhos, dos sacrifícios em nome do amor e das contradições do dever."
Não conhecesse eu o nome do autor e julgaria que estávamos perante uma reedição de Corín Tellado.
Seria publicidade negativa? Se era, funcionou, porque eu trouxe o livro.
-
Afinal, era dos que se lêem de um fôlego quase até ao fim. E sublinho o «quase» dado que, infelizmente, o interesse foi morrendo à medida que José Maria Gonzaga Torres, narrador e personagem fulcral vai assumindo maior protagonismo.
A técnica narrativa não é inédita, mas é extremamente eficiente e isso é o mínimo que se pode dizer da escrita de Vale Ferraz que é límpida, sem rodriguinhos.
Como num inquérito policial, ou como numa investigação jornalística, o jovem José Maria, filho de um oficial miliciano, piloto de helicópteros do exército colonial e de Ana Paula, uma jovem pertencente ao clã dos Gonzaga, uma poderosa família crioula de Luanda, vai recolhendo os pedaços da sua própria história em conversas com os seus perdidos familiares, através do depoimento de próximos: a madrinha, uma freira que deu abrigo à sua mãe, o tio guerreiro das muitas guerras angolanas, a Avó paterna, um General Gaeiras comandante do Avô Torres na Legião Portuguesa, etc.
Lemos assim, com grande interesse, muita coisa sobre os últimos anos da ocupação portuguesa, sobre o papel da Pide nas colónias e sobre a vida numa base de guerrilheiros, sobre o próprio 25 de Abril, sobre o período da independência de Angola e a guerra pela sobrevivência do MPLA.
Nada de melhor para nós, portugueses que temos teimado em ignorar as derrotas militar e económica, o fracasso do colonialismo, a mais absoluta ausência de projecto nacional.
Vale Ferraz é um escritor informado e transmite-nos os factos com mestria e a leveza própria de um romance que nunca se assume como histórico, mas que, de facto, o é.
Infelizmente, à medida que José Maria, "o neto que", parafraseando o autor, "nenhuma das pátrias quis ter" começa a narrar a sua própria história, a partir do momento em que deixa Angola, percebemos que ele pertence a outra metáfora e que não se encaixa nas outras todas.
Macau, as tríades, o jogo, os últimos anos da administração portuguesa, serão temas fascinantes, mas, a nosso ver, como simples leitores, estão a mais neste romance.
Acreditamos que fosse essa a intenção do autor: esse filho de culturas tão diversas, gerado e parido na guerra, só pode tornar-se num exilado, batoteiro profissional - com um toque de realismo mágico aqui e alí, a nosso ver perfeitamente dispensável - ao serviço de uma tríade. Ponto. Assim termina a saga colonial dos portugueses.
É. Mas José Maria também tem sangue angolano. Não era esse o futuro que eu lhe auguraria.
No mais, e Vale Ferraz que me perdoe, o romance perde-se.
Deveria ser uma narrativa do amor cego de duas mães aos seus dois filhos e é uma narrativa da traição das mães:
Fernanda Torres, a avó paterna do jovem José Maria, trai o marido, o salazarista Augusto Torres, com o melhor amigo do filho falecido, ainda por cima.
A avó Gertrudes, do lado materno, essa trai a filha e trai o neto.
A própria Ana Paula, a mãe, trai o seu clã, trai os seus pais ao deitar-se com o inimigo e trai-os de novo quando se nega a assumir o seu lugar na complexa organização dos Gonzaga.
E o grande fio condutor do romance, no nosso demasiado ousado entender, é a traição da Pátria, de todas as pátrias, como já era em Nó Cego.
Ou talvez melhor, neste caso: de todas as mátrias.
-
Li o Nó cego na 4ª. edição, profundamente revista. Tenho pena de não ter conseguido arranjar um exemplar da primeira versão do romance. Por isso, limito-me a citar o que escreve Rui Azevedo Teixeira no prefácio:
"... As mudanças efectuadas tornam visíveis aspectos pertinentes da matéria negra do universo do romance. Assim, o reforço informativo, que nunca chega à cansativa minúcia que mata tantos romances históricos, ou os cortes, acrescentos, trocas e ajustes diversos ou, ainda, por exemplo, a demão dada ao episódio da Ilha de Moçambique, em nada retiram o vigor de Nó Cego. Pelo contrário, com as alterações introduzidas pelo autor, o livro ganhou ainda mais consistência sem ter perdido a frescura, o tom ou uma qualquer fatia essencial da história."
Como O crime do Padre Amaro, nas suas sucessivas edições.
Por isso, muito embora Basta-me Viver não tenha sido, de modo algum, uma desilusão, confesso que vou esperar por uma quarta edição e voltar a comprá-lo.

Sem comentários: