Uma das tradições na minha família, daquelas de que só se fala com um sorriso, é a da pata de coelho: quem anda à procura de casa, quem quer fechar um negócio que tenha a ver com um futuro lar, vai à procura da patinha do coelho, mete-a no bolso, ou na pasta e só a arruma de novo quando o negócio estiver concluído.
Lá em casa havia uma.
Mumificada, sequinha, mas ainda com todo o pelo cinzento, costumava estar embrulhada num papel pardo, ao canto de uma caixa de madeira, no guarda-fato da Avó.
Essa caixa, para aí de uns cinquenta centímetros e uma mão travessa de fundo, era uma autêntica arca do tesouro: lá estava uma raspadeira de cabo de marfim e muita ferrugem, o lacre e o sinete do meu Avô falecido em 1913, várias latas e latinhas, umas com moedas do tempo da Monarquia, outras com santinhos, um molho de cartas atado com uma fita azul,um canivete oferta de um Vinho do Porto, uma mãozinha de cabo comprido para coçar as costas, os primeiros dentinhos de leite de cada um dos netos dentro de outra caixa, postais ilustrados, uns já escritos, com selos exóticos, outros com vistas do Canal de Suez - que, por serem de uma colecção, ninguém usava.
Não me lembro de quem herdou essa caixinha das surpresas. Na volta, fui eu, mas não sei onde pára. Nem a caixa, e pior, nem a dita patinha de coelho.
E se ela está a fazer falta!
Alguém da nossa família, não se alumia os nomes aos santos, anda metido em tranzes desses e, portanto, muito carecido de um amuleto apropriado.
Alguém da nossa família, não se alumia os nomes aos santos, anda metido em tranzes desses e, portanto, muito carecido de um amuleto apropriado.
Por esse motivo e não por outros, aqui lhe mando, desenhada a patinha, que em pessoa não ia pelos fios mesmo que conseguisse achá-la.
É claro, não pensem que eu ia fazer o mesmo pecado que fez o Frei Genebro. Lembram-se?
«E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor,» escreve o Eça, «agarrou o afiado podão que pousava sobre o muro da horta [...] E aí, andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que foçava bolota, desabou sobre ele, e, enquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou com dois golpes certeiros do podão, a perna por onde o agarrara.»
(Eça de Queiroz, Contos, «Frei Genebro», Lello & Irmão, Vol. 1, p. 770)
Por isso, a dita pata aqui vai, junta com o coelhinho, inteiro e vivinho da Silva.
E quatro patinhas não valem mais do que uma só?
7 comentários:
Esse frade tinha três braços?
Xico
Xico
"...três braços?"
Estás a falar de quê?
Sem dúvida! Eu prefiro o coelhinho todo inteirinho! Um abraço.
Èm que casa de família não há uma caixinha destas tão magistralmente inventariada?
Lelé,
quando vejo os coelhinhos bravos (e o que vi por lá mais bravo, bravo meu bem, foi um mansinho coelho...)
a saltitar aqui no meu quintal, dá-me umas ganas de me tornar vegetariano que nem calculas.
Porque é que não sou capaz?
Um abraço também.
Graza:
Se eu conseguisse inventariar as caixas e caixinhas que me vieram parar às mãos, acho que dava para fazer um livro, sabe, daqueles muito chatos, como os inventários municipais, grandes como listas telefónicas.
Género:
"desenho 8 x 12, a tinta da china, representando o convento de Mafra, autor desconhecido..."
"fotografia, mau estado, de senhora, finais do sec. XIX, com dedicatória: «à Margarida da irmã Clemência, Paris 15 de Junho»..."
Quando estiver muito velhinho sou capaz de me entreter com essas coisas.
Um abraço.
Tudo ao mesmo tempo?
1. braço que agarra a perna;
2. idem, agarra o focinho;
3. idem, corta a perna.
Grande frade.
Xico
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