quarta-feira, outubro 20, 2010

As leis da hospitalidade

A minha Osguinha Moura (tarentola mauritanica)
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Quando aqui neste post se fala nas leis da hospitalidade, acreditem, não estamos a falar do Pierre Klossowski nem da sua estranha interpretação dos deveres do hospedeiro.
Não, do que estamos a falar é mesmo daquelas visitas inesperadas e, confessemos, nem sempre oportunas.

(O meu mais recente visitante: um Mus Spratus?)
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Reparem:
Já toda a gente, sobretudo se mora no campo, teve visitas assim, do tipo «catrapimba!»
Sabem como é: estávamos nós ali sentados, a apanhar um solinho e a ler o Danilo no teatro da vida, por exemplo, ou o Caderno de memórias coloniais, e vem parar ali ao portão, um todo-o-terreno, brilhante de novo, como só têm os lisboetas.
Quem será, quem não será?
Levantamo-nos, o dedo entalado a marcar a página e reconhecemos vagamente os acenos de uns primos, daqueles que não víamos desde o funeral da Tia Ermelinda e que, francamente, não estávamos à espera de voltar a ver até ao funeral do Tio Zé Damião daqui a muitos anos - que vaso ruim não quebra nem à mão de Deus Padre.
- É pá! Vocês por aqui? - precipitamo-nos.
- Olha lá! Íamos a passar aqui ao pé - explica o exuberante Primo Artur logo ao apear-se, - e a vai Isaltina e disse: «olha, não é para além que mora aquele teu parente meio maluco...?» E vou eu e digo: «olha lá! é mesmo; bem lembrado!»
E zás! Uma palmada de lenhador nas nossas decadentes costas de intelectual, de esquerda ainda por cima.
Pronto, deita-se mais um pucarinho de água na sopa, tira-se do congelador os bifes que eram para domingo que vem e, quando há sorte, alguém faz à pressa um espera-maridos.
Cá em casa as coisas, às vezes, são menos complicadas: os bifinhos ainda vá, mas do resto, pode ser que alguém trate enquanto eu arranjo o queijo, umas tostinhas, e abro a garrafa do tinto aqui da região.
- Olha lá! - diz o Primo, a mastigar o primeiro gole. - Boa pomada! Também lá tenho em casa umas caixas, mas é dali de Palmela, ou o que é! O Duas Quintas, dois mil e qualquer coisa, um ano muita bom. Ha-des provar, pá. Também é cá uma pomada! Eu trago-te quando cá viermos. Mas duas ou três, que a gente não somos de nos ficar só por uma, olha lá!
E a gente, olha lá que não olhássemos.
Também há outro género de visitas, mas são francamente mais discretas.
Por exemplo, há dias andava aí por casa, poisada lá no alto das paredes, uma osgazita. Elas são assim mesmo, parece que estão coladas lá no sítio com um prego, como as lagartixas de loiça do Bordallo Pinheiro, sabem? E, de repente, olhamos e já está no outro canto, e depois, como diria o Primo Artur, «olha lá! A gaja desapareceu.»
- Pois, elas são mesmo assim, respondo eu. - Chegam discretamente, discretamente se vão embora...
A esta última só a voltei a ver dias depois, do lado de fora da janela, numa das primeiras chuvas deste Outono. Lá ficou tempos infindos, deliciada com o banho, como nós, às vezes, debaixo do chuveiro.
Perguntarão: «mas, olha lá, como é que sabes que é sempre a mesma osga?»
Não era a mesma? Bom, seria uma irmã gémea, talvez, é um problema à Bertrand Russel: se um gato passa por baixo da mesa e a gente deixa de o ver, como é que sabemos que é o mesmo quando reaparece do outro lado?
Mas, pronto, esqueçam.
Que, pelo menos, é uma vizinha isso é, porque vem cá muitas vezes e dantes morava uma família delas atrás da caixa do correio.
E também há uns ratitos por outros.
Daqueles muito pequeninos, não são como o Primo Artur que não cabe numa carripana qualquer: tem de ser um V-12, no mínimo. E onde os ratitos roem uma pontinha de toucinho, o Primo Artur engole um paio inteiro, decilitro e meio, além de quatro azeitonas e um queijinho de Niza, está bem de ver. No pão não toca: está de dieta, pelo menos até à hora do almoço.
Foi, aliás, uma pontinha de toucinho o que perdeu este meu ratito.
Lembram-se do João Ratão, cozido e assado no caldeirão?
O que eu tinha não era assim tão mortífero como uma panela de caldo a ferver.
Nem era sequer uma daquelas ratoeiras que apanham o desgraçado pelo pescoço e lho partem, ou como aqueles iscos envenenados que, só de olhar para eles a gente pensa logo na Assembleia da República, sabe-se lá porquê.
Quando nos apercebemos do novo conviva que tínhamos a morar connosco, deu para perceber que era ao contrário do Primo Artur.
Em vez de comer e beber, dormir uma sesta e ir-se embora com a Prima Isaltina «para não atrasar o jantar, olha lá», este montava o acampamento como que para ficar, roeu a tampa da caixa do arroz, abriu um buraquinho muito redondinho numa caixa de tostas, acartou tiras de uma esfregona para fazer um ninho.
Não, tinha de se tomar medidas, foi o que pensámos. Ainda se fosse só ele! Mas atrás de um ratinho vem sempre uma ratinha e depois mais uma dúzia a fazerem os seu ninhos nas mangas das camisolas...
Fui lá acima, à casa de ferragens, a ver se havia assim alguma coisa que não matasse os ratos...
«Como? Que não matasse os ratos?» Via-se pelos sorrisos que achavam que eu era mesmo parvo. Ou lisboeta, pronto!
Pareciam o Tio Zé Damião, grande caçador dos tempos em que «aquilo é que era!»
Para ele, se nós não estivermos ainda, pelo menos, na casa dos oitenta, não passamos de aprendizes ranhosos do ofício de viver.
- Os ratos? Isso são coisas daninhas, jovem! Quantos mais a gente matar, menos crescem para o ano. É como os peneireiros e as cobras que nos andam a comer os coelhos! Ah que estão em vias de extinção! Pois que se extingam, fazem cá alguma falta?
Não valeu de nada falar do equilíbrio das espécies. Os argumentos do Tio são irrespondíveis:
- Pois. Havias de ter um ninho de vespas dentro da retrete e eu queria ver como é que lá te sentavas!
Mas pronto. Estava eu na Casa de ferragens não era?
- São criaturinhas de Deus, argumentei eu na loja, assim timidamente, como que a pedir desculpa. - Se calhar também têm direito à vida...
- Ehhh... lá isso... - concedeu o encarregado com um discreto encolher de ombros para o ajudante.
Como o argumento místico, às vezes, causa menos má impressão do que o ecológico, lá me arranjaram uma gaiolinha muito bonita, cromada, parecida com um passador, daqueles de rede. Punha-se ali o isco, explicaram-me, e «vai ver; entra e nunca mais sai.»
Demorou ainda um par de dias. Mas, suponho eu, lá chegou o momento em que a tentação foi mais forte: o meu visitante foi à procura de uma refeição mais pertinho, se calhar estava cansado das correrias pela casa toda...
Quando demos por ele, mal se via, estava muito quieto, ao fundo da gaiola. Quando o trouxemos para a luz, «ah ratinho d'um catano!», aquilo é que foi pulos e correrias à volta... de fazer dó. A solução foi tapar a gaiola com uma toalha, fazer escuro lá dentro e espreitar só por uma nesga.
E pronto: gostaria de vos dizer que estou aqui a construir um palacete para este ratinho, tipo gaiola para hamsters siberianos, mas não. Não suportaria vê-lo ali confinado, a correr em volta, a tentar esconder-se num buraquinho de cada vez que eu quisesse dar-lhe um pedacinho de bolacha.
Fui soltá-lo lá a cima, ao pé do poço, o mais longe possível dos gatos da aldeia e, de vez em quando, passo por lá a deixar umas migalhinhas.
- E olha lá! - perguntaria o Primo Artur se eu lhe contasse esta história. - Como é que sabes que é ele quem vem comer essas merdas? Podem ser os pardais, sabes lá!
- Pá, não interessa - tinha eu de responder. - São as leis da hospitalidade, é assim e acabou-se.
E se ele refilasse, eu abria-lhe outra garrafa de tinto:
- Psst! Cala-te e bebe!
Mas sei que, depois, já a caminho de Lisboa, naquela espécie de viatura anti-tumulto a que ele chama carro, há-de dizer para a Prima Isaltina:
- É pá, olha lá! Aquele gajo está mesmo, pá...! Vai-se a ver, ele nunca foi muito bom, mas agora, porra, pirou de todo!
E eu ralado, hem?

6 comentários:

Graza disse...

Osgas?!... Olhe Tacci, era miúdo em África, um dia, tive que dormir numa casa de amigos, cujos tectos muito altos, eram forrados de uma cana do tipo bambu. Á noite, vinham aquelas osgas enormes, não uma, não duas, não três… mas uma horda delas! Se calhar eram só três, mas eu já via aquilo multiplicado pelas paredes. Havia lá um adulto maluco que não se importava com as osgas, – longe de mim projectar o adjectivo para quem não se importe com osgas! – Esse chanfrado dizia-me para ter cuidado que elas vinham durante a noite sugar-me a saliva se eu dormisse de boca aberta!
Está bem de ver o sarilho que me arranjou: foram noites em claro a segurar as pálpebras e a vigiar as osgas até cair de maduro! Resultado: comprei há tempos um livro do Agualusa cujo narrador é uma osga… é pá, eu acho que ele falhou naquele livro: não há maneira de acabar a leitura. :)

gamesh disse...

:)

tacci disse...

Graza,
estou cheio de pena de si. As pobres osgas são completamente inofensivas e grandes devoradoras de melgas no Verão (no Inverno creio que dormem regaladamente porque nunca vi nenhuma). Ter uma delas num tecto de caniços ou de tábuas, é uma benção. O malandro desse seu «amigo» bem podia ter-lhe contado a história com outro bicho qualquer: elefantes, por exemplo, se bem que não me parece que abundem nos tectos, mesmo nos africanos.

Um abraço.

tacci disse...

Gamesh:
Pois.
:) para ti também.

Andrea de Godoy Neto disse...

Tacci, eu adoro lagartixas. E os ratinhos, sempre que vejo um em perigo de morte ponho-me a salvá-lo (ou tento...rs).
Dia desses, na casa da minha mãe, apareceu um pequenininho e logo foi aquele alvoroço. E o pobre estava lá fora, no meio das plantas. Mas já queriam matá-lo e ele mal se escondendo num buraco em que só lhe cabia a cabeça. Quando o peguei agarrou-se ao meu dedo desesperado, o pobre. Até achei que ia morrer do coração (que rato tem dessas coisas, né?), mas o acalmei e o levei para uma área de mato nas redondezas. :)

um abraço

tacci disse...

Que mais dizer, se não que foi um gesto bonito, Andrea?
Parabéns!