segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Complemento circunstancial de lugar onde



Estávamos, os meus cães e eu, ali os três, sentados a apanhar sol e a bendizer a Primavera antecipada, e, num repente aí vão eles a ladrar direitos ao portão, num acesso de energia tão fulgurante que eu dei comigo a berrar «ena Pai, isso é que é bom estar vivo!»
O Tio Zé Damião, por exemplo, acha que eu tenho o pésimo costume de falar sozinho.
Enfim, é verdade de certo modo, mesmo se ele também afirma com aquele ar de autoridade que «a sala dos cães é rua».
Mas nunca estou não completamente só, sobretudo porque os meus cães andam sempre por aí, ao contrário do que diz o Tio, geralmente a meter-se-me debaixo dos pés a abanicar-se de descarada pedinchice.
- Que é que tu queres? Mostra lá ao dono! - digo eu.
Eles mostram, claro, seja o que for, nem que mais não seja, para me contentar. Um apetite súbito a atravessar-lhes o espírito, comida ou água, ou ir para o quintal, qualquer coisa que altere a identidade dos instantes e faça mover o tempo.
E eu respondo também, uma coisa oportuna:
- Logo! Agora não, que o dono está aqui a acabar este desenho.
O que escusava era de continuar com explicações:
- Não está a correr lá muito bem, percebes?
Se «vamos» é a palavra mágica, abre a porta a uma imenside de esperanças, a palavra «logo» é desilusão. Mesmo que o discurso prossiga por aí fora, já não ligam. Não querem saber dos meus desenhos, é verdade que não são Dürers nenhuns, mas um bocadinho de boa educação não lhes ficava mal, pois não?
Não querem saber.
Vão dormir mais um bocadinho porque sonhar é uma actividade nobre. Até passar mais um fabiano a pedalar, pelo menos.
-
É certo que as caravanas passam.
Mas os cães, esses não querem saber: ladram à mesma.
Correria, excitação, muito barulho, os rabos a abanar e ar contente de quem cumpriu o mais sagrado dos deveres.
Um gato, à falta de melhor, também serve. Mas as bicicletas, isso é que é!
São mais lentas, dão azo a correr de um lado para o outro ao longo da cerca e, às vezes, tem-se tempo para ir e voltar, dentes à mostra, num alarido eufórico.
-
Felizmente passam muitos ali em frente ao portão.
São ciclistas como deve ser, com aquela fardamenta própria dos ciclistas.
Dantes um cidadão pedalava nas pasteleiras com um fato qualquer, até mesmo o do domingo. Punha umas molas - às vezes da roupa - na baínha das calças para não prender na corrente e lá ia ele, todo pimpão.
Nos tempos que correm, com tudo mudado, a crise e o dólar, o Iraque e a revolta no norte de África a fazer lembrar a história do Bei de Túnis, ninguém se atreve a tamanha pinderiquice.
O cidadão não escapa.
Tem de ir à loja do chinês para ter tudo em ordem, de acordo com os figurinos, calções pretos, as camisolas a moldar os músculos, luvas sem dedos e aqueles espantosos capacetes de ciclista. Às vezes com uma pequena mochila às costas, lá vão eles, a pedalar pelos caminhos a fora.
São quase sempre homens, e digo «quase» apenas por precaução: pode ser que as haja, mas o facto é que, raparigas, nunca passa nenhuma.
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Fico a pensar no que terão elas contra as biclas de todo terreno.
Nem sei mesmo se há algum desporto que seja feminino por excelência. É claro que, como qualquer rapaz, elas nadam e jogam à bola, vão nas mais diversas modalidades competir umas com as outras nos Jogos Olímpicos. Mas não creio que o façam em modalidades em que sejam, por exemplo, recordistas mundiais.
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Quando eu era jovenzinho, miúdo a brincar na praia, as meninas jogavam com o ringue, normalmente num círculo, atirando-o umas às outras e rindo-se quando alguma o deixava cair. Quando o grupo era grande, jogavam ao «piolho», um jogo que hoje é conhecido pelo «mata» e só se joga nas escolas, hélas, abastardado com uma bola em vez do ringue.
Não sei se ainda se fabricam: eram uns anéis ocos de borracha, com uns três centímetros de diâmetro na secção e cerca de vinte no diâmetro maior, ou seja, uns sessenta e três de perímetro se aproximarmos às décimas.
Sempre achei que era o desporto ideal para a praia e as raparigas tornavam-se exímias no lançamento do ringue e, a seguir, a apanhá-lo no ar quando ele vinha a descrever curvas fantasiosas.
A bola é masculina: importa o tamanho da mão e a força do braço.
No ringue era mais importante a habilidade a apanhá-lo no ar, deixá-lo deslisar pelo braço e logo o atirar antes que as adversárias tivessem tempo de se precaver; a velocidade, o golpe de vista e o efeito que se dava ao ringue no seu lançamento, eram fundamentais.
Mas claro, sendo fenminino, o ringue não teve nunca uma federação, campeonatos nacionais e muito menos representação olímpica.
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Quando penso num desporto, assim caracteristicamente delas, a primeira coisa que me ocorre é a dança.
Claro, há também a ginástica rítmica e a aeróbica e tantas outras.
Mas explosões de energia como os meus cães são capazes quando correm ao longo da cerca, como eu era capaz quando tinha dez anos e corria pelas vinhas de encosta abaixo, a contornar as cepas, a romper as gavinhas e as vides com o corpo, essa exultação pertence à dança.
"Estar cheio de vida", escreveu Coetzee em The lives of animals, "é viver enquanto corpo e alma." E acrescenta: "Um nome para a experiência de vida completa é alegria."
Não consigo deixar de pensar que a vida completa é uma dança, é um pairar sem peso, um rodopiar sem fim.
Quando se cai, morre-se.
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E explico aos meus dois cães que se vieram sentar arquejantes aqui ao pé:
- Vocês já repararam que estão vivos? Mas mesmo vivos? Mesmo, mesmo, mesmo?
É claro que os cães não me ligaram nenhuma. Um deles, a cadela, já se levantou e, pela barulheira, deve estar a beber água à maneira dela: metade pela goela abaixo, outra metade espalhada à volta da tijela.
E eu, desiludido com o auditório - embora não muito, confessemos - volto a correr aqui para o computador, para não perder o fio às ideias.
Acaba de me ocorrer uma coisa qualquer de sabor Heideggeriano: que a vida é a verdadeira «essência do fundamento», o «complemento circunstancial de lugar onde» de tudo o que é.
Que todas as coisas acontecem no tempo, é certo; mas o próprio tempo que vai correndo de cronão para cronão, não passa de intantes num contínuo de vida, num cogito que é.
Talvez por isso, vou eu aqui escrevendo, a morte é um absurdo. O não ser, dizia o Parménides, o não ser, não é. A não-vida não existe: viver é que é o Bem Supremo.
Já sabiam, não sabiam?
Eu, que sou assim, meio tosco, é que só agora me dei conta.
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Não quero dizer, lá por a Vida ser o valor máximo, que se deva estar vivo a todo o custo.
lugares onde indignos.
O samurai, por exemplo, em desonra não pode viver. Suicida-se, ou melhor dito, executa o ritual do seppuku.
O nobre perante um conflito insuportável tem o direito de escolher uma morte qualquer, por exemplo, bater-se em duelo.
O escravo pode decidir que não quer ser escravo e enfrenta o pelotão de fuzilamento de olhos abertos.
Mesmo se é um dom de Deus, algo que só a Ele pertence, a vida, o Bem Supremo, não pode ser erigida num valor absoluto: por alguma porta o mal, o nada, a contradição, teria de aceder ao lugar onde e constituir-se em dor, em caos, em guerra, em narco-tráfico. Em escravatura, fome e doença.
Talvez o mundo, que não passa de uma ideia - transcendental, diria Kant - parte do meu pensar a própria vida, seja no fundo, lá bem no fundo, uma não-ideia, uma impossibilidade.
-
Os meus cães já andam por aqui a reclamar:
- Então? Ainda não são horas do almoço?
Ainda não; estou aqui a pensar:
- Rai's parta mais os ciclistas todos...

10 comentários:

Unknown disse...

Juro que vou levar (com tua licença) este texto para uma aula de Filosofia, para os meninos treinarem uma das suas mais falhadas competências: a hermenêutica do texto filosófico!
É um texto belíssimo, muitos parabéns e que nunca te canse o teclado.
Beijinhos.

Amélia disse...

Li este texto a primeira vez e gostei muito dele. Hoje passei por cá de novo e ainda gostei mais. E apeteceu-me dizer que o seu autor é mesmo isto que aqui está: falar com ele é não parar, é não querer parar porque há sempre mais uma coisinha interessante que vem a propósito...Mas vamos ao texto: Com uma imensa harmonia do princípio ao fim, começamos com os cães, passa-se ao Tio Zé Damião, daqui a nada está-se em Túnis, e na loja do chinês, com as bicicletas..e as bolas e os ringues (para os meninos e para as meninas...)e chegamos à dança... Tacci não pára...sou eu que diminuo o ritmo da leitura... E leio, e releio, e deixo-me encantar. E apetece-me ir ler o Coetzee...Já!E dançar, dançar, dançar!...
Beijinhos

Graza disse...

Delicioso, Tacci! Gosto destes desenhos em prosa, fazem bem ao fígado. Só um cartoonista escreve desta forma, sobre nadas que são tudo. Se voltar a ler, vou voltar a ficar bem disposto. Parabéns.

Em@ disse...

Parabéns. também gostei muito. visualizei tudo, tudinho e para além do mais compreendo-o muito bem porque também tenho uma Nina e um Misty.
beijinho ou abraço

tacci disse...

Lelé
Sinto-me lisojeado e fico curioso: como irão eles reagir?
Beijinhos.

tacci disse...

Obrigado, Amélia.
Beijinhos e nunca te canses de dançar.

tacci disse...

Graza
Obrigado.
Ainda bem que gostou. É o tipo de coisas em que eu também gosto de ir pensando.
Um abraço.

tacci disse...

Festinhas à Nina e ao Misty, Ema.
Poder ser as duas coisas, beijinho e abraço?

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