«Se escrever alguma coisa sobre Açoreira não se esqueça cá do rapaz...»
Mas não têm tempo de dizer mais nada. A desordem rebentou numa mesa do outro lado da sala, com copos e garrafas partidos de mistura com exclamações que afundam a música.
William encaminha-se para a mesa, calmamente, bamboleando as ancas, mas levanta-se um dos latagões que a ocupam para o enfrentar na atitude de desafio de quem vai pegar um toiro. São membros de um grupo de forcados de qualquer terra alentejana, todos de físico desenvolvido, ao contrário da maioria dos presentes, expressões hostis e trocistas. Em todos os actos da sua vida usam a mesma atitude que exibem na arena: desplante e coragem inútil. Para eles, William, pálido e esguio, o rosto mais franzino pela cabeleira enorme, assemelha-se a um fraco novilho que uma simples palmada entre a cornadura derrubará facilmente.
«Os senhorres... é favorr abandonar a sala...»
O que lhe faz frente e parece ser o cabo do grupo, avança de mão aberta e gargalhada escarninha:
«Seu maricas! Vou já tirar-lhe essa camisa cor de laranja!»
Os pares imobilizaram-se, algumas raparigas soltam gritinhos, de medo ou de espanto, e só a voz do disco continua a dominar o ambiente, desvanecendo a violência da cena ou tornando-a ridícula:
Si jávais Brigitte Bardot
Ah! si jávais Brigitte Bardot...
Não se movendo quase, William evita o punho fechado do forcado e projecta-lhe um murro em pleno queixo. O outro sofre a surpresa, mas não se arreda um milímetro sequer do local em que está, e nesse instante, como a um sinal do cabo, os restantes, que já varreram para o chão quantos copos e garrafas havia em cima da mesa, ergueram-se e secundaram o chefe ultrajado.
[...] O guarda pretende entrar no grupo, tornar-se simpático, pressentindo que deve tanta consideração àqueles homens de autoridade e força, por certo de bom nascimento, como ao próprio dono da boite a quem se obrigam a defender.
[...] «Deviam fechar isto, senhor guarda, este coio de maricas. Olhe-me para estes tipos todos e diga-me lá se distingue os machos das fêmeas... Mas nós pagamos, pagamos tudo, descanse...»
Perante a cena, os demais frequentadores do Welcome, William, Camacho, as inglesas de menos de vinte anos, os moços atrevidos mas agora silenciosos, o próprio José Álvaro, ficaram estranhamente deslocados e insignificantes.
Mário Ventura, O Despojo dos Insensatos