Parece que Deus quis, por isso, senhorinha, cá vai:
O primeiro impulso foi fechar a porta. O Carlinhos sabia que os bichos têm cheiro, a Mãe (e sua Tia, como já sabe) andava sempre a dizer que o gato da vizinha de cima deixava as escadas empestadas, mas, pomba! nunca tinha visto (cheirado) nada como aquilo. Ainda com a mão no ferrolho reflectiu: queria um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado para não deixar pelos na alcatifa ou não queria?
Fechou a porta atrás de si e avançou uns passos. As gaiolas feitas de rede iam até lá muito em cima, empilhadas umas nas outras, entaladas num emaranhado de escadas e passadiços que faziam lembrar as histórias do Homem-Aranha e de todos os lados surgiam as pontinhas pretas ou rosadas de focinhos de cães que ganiam, ladravam ou uivavam. nas jaulas que ficavam à altura dos olhos, os canitos pretos, brancos, malhados ou castanhosabanavam furiosamente os rabos e perguntavam:
- Sabes onde é a minha casa?
Ou então:
- Sabes dos meus donos?
Outros ainda, só queriam que ele lhes dissesse como é que se saía dali.
- Tu também vens para cá? - perguntou uma magrizela com o focinho embranquecido, a segurar-se com as unhas à rede da gaiola de baixo, num esforço para o cheirar.
O seu Primo (o Carlinhos, claro) pôs-se de cócoras para a ver melhor.
- A minha dona, logo vem-me buscar - informou da jaula ao lado uma outra, de cauda emplumada quase sem pelo, o nariz empinado.
- Coitada - disse a Magrizela baixando a voz. - Já não está muito boa da cabeça. Há quinze dias que diz a mesma coisa. E tu, afinal, o que é que fazes aqui?
- Sabes jogar xadrez?
- Ná. Não sei jogar coisa nenhuma. E olha, já estou muito velha para aprender. Sabes quantos anos tenho? Catorze. E tu, tu ainda és uma cria. Tu tens o quê, oito meses?
O Carlinhos fez contas de cabeça: sete anos de homem fazem um de cão, portanto já devia ter um ano e coisa. Mas nem teve tempo de dizer fosse o que fosse:
- Não viste lá fora a minha dona? - interrompia a emplumada. - Está a preencher os papéis para me vir bucar.
- Vi - mentiu o Carlinhos. - Mandou dizer que só te pode vir buscar amanhã, mas vem logo de manhâzinha cedo.
Com o indicador (era o que cabia nas malhas da rede) fez uma festa no nariz da Magrizela e acrescentou:
- Esperem um bocadinho. Venho já.
Ergueu-se para continuar pelo corredor.
- É um bom mentiroso - murmurou a Magrizela para si mesma. - Há-de ser pai de muitas ninhadas.
Deitou-se a um canto da sua cela e adormeceu a sentir uma pontinha de calor, como se estivesse de novo deitada ao pé da fogueira.
O Carlinhos, esse, pelo corredor fora via tantos cãezitos e canzarrões que não sabia o que fazer. Perguntara, um a um, para a esquerda e para a direita, de baixo até tão alto quanto os bicos dos pés alcançavam: «Sabes jogar xadrez?» E a resposta era invariavelmente:
- Não chateies, meu. Diz lá, mas é quando é que a gente pode bazar daqui.
O Carlinhos tomou uma decisão. Assim não ia a lado nenhum, havia centos de cãezinhos por ali acima, para lá dos passadiços. O melhor mesmo era, em cada bocado de corredor, gritar com quantas forças tivesse «há aí alguem que saiba jogar xadrez?» e esperar pelas respostas.
Parecia, de facto, a melhor solução, mas não foi. Por dois motivos. Mas, para os ficar a saber, minha gentil senhorinha, terá de esperar pelo próximo capítulo (se Deus quiser, claro).
(continua no próximo número)
11 comentários:
... e Deus quis muito bem ! (não digo que meti uma cunha que parece mal).
Só por ver que está ocupado o desculpo da sua ausência da minha caixinha de comenhtários :(
Lembra-se de uma música que coloquei no fim do ano da lisa Gerrad que gostou? Hoje tenho lá outro, veja se gosta. Se gosta é definitivo, gosta de música alternativa :) (afinal também ela muitas vezes um pouco surreal...)
Beijinho e bom fim de semana
Gi, vou já lá a correr e venho logo que o seu blog me deixe. É que, mesmo quando não escrevo os comentários, costumo perder-me e ficar por lá um par de horas. Como parece mal não quero pedir-lhe para meter mais cunhas, mas se pudesse, nem que fosse só um par delas...
Um beijinho Gi, e obrigado.
:) é o vídeo de ontem, não o de hoje...se bem que bem interessante também.
Beijinhos Tacci, boa semana
o meu primo Carlinhos sempre teve tendência para magrizelas...
ou seram as magrizelas que gostam do meu primo Carlinhos?
serão...
Gosto muito dos seus textos, cheios de amor pelos animais e sarcasmo pelas pessoas. No entanto esse sarcasmo é ternurento, e isso é uma imagem de marca. Aplica-se também aos desenhos.
Fico á espera de mais história, ou outra que lhe ofereça a inspiração.
Gi, já estive no seu blog a ouvir a Lisa. É claro que gostei e, desde o seu post de fim-de-ano, fiquei fascinado. Já consegui o "Whalerider" e também passo os dias a ouvi-lo.
Um beijinho e uma boa noite para si.
O anónimo, pelos vistos, lá por baixo da burca do anonimato, é a gentil senhorinha com quem me tenho correspondido nesta história. A Magrizela, pode ter a certeza, se conseguir escapar da jaula quem já não escapa é o Carlinhos.
Um abraço.
Obrigado pelas suas palavras, Maria. Quando era pequenino vacinaram-me com uma agulha de Assis e deu nisto. Confesso que o irmão Lobo me é mais simpático do que o irmão Portas (adivinhe qual deles, mas, pelo amor de Deus, não o diga nem às paredes e muito menos à blogoesfera).
Um abraço.
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