analogias
Há coisas de que só demasiado tarde nos apercebemos e que, provavelmente, teriam feito a sua diferença.
Por exemplo, numa das suas conferências, pouco antes do Maio de 68 em França e da nossa crise académica em Coimbra, Joseph Ratzinger contou uma história, muito ao seu jeito de argumentar a partir de analogias.
Podíamos chamar-lhe a «Parábola do bom Palhaço» e começa num circo que irrompe em chamas. Podemos imaginar: as trapezistas semi-nuas, os cavalos enlouquecidos, o velho tigre às voltas na jaula e rugindo de inquietude, os cães amestrados a ganir de rabo entre as pernas...
O Palhaço é o único que já está vestido e é encarregado de chamar os bombeiros e lá vai ele, a correr, a face pintada, o chapéu às três pancadas... É claro que, naquele tempo, ainda não havia telemóveis e que o campo da Feira onde acampavam os circos todos não tinha nem uma cabine telefónica: reinava o mais absoluto dos primitivismos.
Como se adivinha, porém, para os pacatos campónios que o viram chegar, o desespero do palhaço é como se fosse apenas mais uma palhaçada. Quer dizer: como uma divertida manobra para levar mais espectadores ao Circo. E quanto mais ele desespera, mais os bondosos aldeãos riem e o aplaudem.
É natural: o hábito não faz o monge, mas como disse Milôr Fernandes, "fá-lo parecer de longe". E que há-de fazer alguém vestido de palhaço, senão palhaçadas? Não é?
Para o padre Ratzinger, futuro Papa, "esta imagem capta sem dúvida um aspecto da realidade apreensiva em que se encontram a teologia e o discurso teológico nos dias de hoje, pois revela o peso que tem a impossibilidade de desfazer os estereótipos do pensamento e da fala habituais, para mostrar que a teologia trata de um assunto da maior importância para a vida humana." (Introdução ao cristianismo, p. 28)
Ou seja: não liguem à vestimenta do teólogo. Por mais antiquados que sejam os seus paramentos, por mais obsoletos os seus rituais, o seu latim, o seu cânone, não se riam! Ele está a falar da vossa própria humanidade.
Desmaquilhasse-se o palhaço, despissem-se-lhe os adereços da função e do estéreótipo: o seu apelo ganharia de imediato o que lhe faltava: a credibilidade, o dramatismo, a urgência.
É sedutora a analogia. Estamos fartos de alarmes, de gritos de "aí vem lobo!"
Houve a gripe das aves, coitadas, imagino-as a assoarem-se a lenços de papel.
Houve o bug do ano 2000 que havia de paralizar os computadores de todo o mundo.
Há a Sida e o Ébola.
Há o aquecimento global com os ursinhos brancos em equilíbrio precário numa minúscula placa de gêlo fundente, em risco de se afogarem.
E a doença das vacas loucas, lembram-se? Ameaçou sériamente transformar em esponjas informes os miolos de quem comesse bifes do lombo na Trindade ou no Nicola - e na volta, foi isso o que aconteceu ao nossos governantes, muito coisa ficava explicada. Entre isso e a pura ganância, confesso preferir um quadro clínico gravoso à descarada desonestidade. São idosincrasias, como agora se diz.
Mas voltemos à vaca fria.
Bem podem os teólogos vir gritar os seus avisos mais pungentes, «salva a tua alma enquanto é tempo, meu palerma!» Ao vê-los vestidos de palhaços, quem evitará um riso entre o céptico e o tolerante?
Esta analogia, no entanto, para ser devidamente compreendida, necessita de algumas pequenas precisões. A mim, ocorre-me perguntar se são só os paramentos o que maquilha a Igreja Católica e, especialmente, os seus teólogos. E de que estão eles maquilhados?
Sim, de palhaços, segundo Ratzinger.
Mas há mais do que um papel no que se convencionou chamar palhaço, não há? É por isso que as analogias são sempre tão traiçoeiras e, não raro, uma forma desonesta de argumentar.
Quando eu era menino e ia ao circo, era ainda o tempo do Palhaço Rico, vestido de lantejoulas e com um barretinho cónico, e do Palhaço Pobre. O Palhaço Pobre era o que levava os enormes bofetões: vestia-se de trapalhão, calças demasiado largas com vistosos remendos, suspensórios por cima de uma camisola de riscas berrantes e uns enormes sapatorros em que tropeçava frenquentemente. Hospedava-se num hotel tão chique, tão chique que era conhecido pelo Hotel do Chiqueiro. E às refeições, para além das «azeitonas recheadas» - «com o caroço», entenda-se - comiam-se também «batatas salteadas»: era «batata sim, batata não. Batata sim, batata não.»
Quando eu era menino e ia ao circo, era ainda o tempo do Palhaço Rico, vestido de lantejoulas e com um barretinho cónico, e do Palhaço Pobre. O Palhaço Pobre era o que levava os enormes bofetões: vestia-se de trapalhão, calças demasiado largas com vistosos remendos, suspensórios por cima de uma camisola de riscas berrantes e uns enormes sapatorros em que tropeçava frenquentemente. Hospedava-se num hotel tão chique, tão chique que era conhecido pelo Hotel do Chiqueiro. E às refeições, para além das «azeitonas recheadas» - «com o caroço», entenda-se - comiam-se também «batatas salteadas»: era «batata sim, batata não. Batata sim, batata não.»
Tinha graça? Não sei. Sei que era do Palhaço Pobre que nós mais gostávamos.
Receio que, pelos anos 60 do século passado, pelas alturas em que Ratzinger fazia estas conferências, alguns Palhaços Pobres tenham feito a sua irrupção na Teologia.
Havia, para começar, os Padres Operários. E as Comunidades de Base. E havia essas estranhas personagens lá de longe, como Frei Gustavo Gutérrez, que, na América Latina, reflectiam sobre o papel da Igreja, Mãe e Mestra, face ao Mundo. Outros se lhe seguiram.
Leonard Boff, claro, mas também D. Hélder da Câmara, que durante o Concílio Vaticano II, se aliara àqueles que reclamavam uma Igreja como a de outro Palhaço Pobre, S. Francisco de Assis, o Jogral de Deus. Todos eles tiveram problemas com a Curia Romana. E Leonardo Boff, é sabido, foi condenado ao silêncio pelo futuro Papa, o Cardeal Ratzinger à frente da Sagrada Congregação para a Doutrina e a Fé.
E D. Óscar Romero. Esse foi assassinado, está tudo dito.
Ninguém quer uma Igreja dos Pobres, muito menos a Santa Sé.
O Palhaço Pobre só serve para levar os bofetões e para comer no Hotel do Chiqueiro. A Mãe e Mestra (a Mater et Magistra, segundo a Encíclica de João XXIII) recusava esse Mundo dos Pobres que viveu, durante os anos sessenta e setenta do século passado, a Esperança a par com a Fé.
A Caridade, em breve lhe seria retirada.