segunda-feira, outubro 20, 2008

O Mundo inquietante de um anarco-surrealista



1
Escrevia-se em transe, quase como que para lá da vontade, do dilema de Hamlet, das imposições de Lulio. Tudo e o seu contrário, a lógica do sonho, do inconsciente libertado pela fantasia que nada amarrava: o real é um "cadáver" requintado, "esquisito", ressuscitado em noites gloriosas, ali ao Rossio, no Café Gelo.

2
De largo iam os bem pensantes: havia um regime autoritário, é certo, uma polícia política, tinha de ser, uma Guarda que escoronhava a torto e a direito.
Aqui ao lado, porém, já tinha passado uma guerra civil e, por essa Europa, uma guerra mundial. Por cá, Graças a Deus, não se passava nada: a Pátria estava salva. Podia tolerar uns desmandos de meninos da boa sociedade, como o Cesariny. Vindo de Paris, tinha inventado grupos surrealistas - a que pertencem, por exemplo, o O'Neil, o Cruzeiro Seixas, o António Pedro e, claro, também o Mário-Henrique Leiria. Um pouco mais longe moravam os neo-realistas. Toleravam-se, nem sempre amigavelmente, mas concordando todos facilmente em que era preciso derrubar o Estado Novo. Só se discutiam os caminhos para lá chegar.
A luta pela consciência começa onde? E qual é o papel do Artista?
A subversão pela liberdade da imaginação, pela destruição dos sentidos aparentes, pela ironia - é o caminho que escolhem O'Neil, por exemplo, e também Mário-Henrique.

3

No ano exacto em que as colónias, perturbando gravemente a pátria beatitude, se insurgiam, o Mário-Henrique foi preso. Já tinha sido expulso, em tempos, da Faculdade de Belas Artes. Abandonou o Gêlo e foi por esse mundo fora: encontrou no Piauí, "seis mil quilómetros mais longe e vários anos distante, quando bebia uma cachaça", aquele isqueiro que lhe tinha dado a mulher. Concluiu que "realmente os mistérios não são uma coisa assim tão complicada".
Seguiram-se as Lutas Académicas, as manifestações do 1º de Maio, greves, emigração a salto, deserções.
Os répteis de serviço do salazarismo inventavam sonoridades: os surrealistas não tinham o exclusivo da escrita delirante. As nossas caravelas não se deixavam «arrastar pelos ventos da história» e, «orgulhosamente sós», «Portugal uno e indivisível» «só chorava os mortos», porque os «vivos, a soldo de Moscovo, os não mereciam ».
Alguns Casos de direito Galático foram sendo publicados no jornal República. Mário-Henrique Leiria estava de volta. E em Março de 1973 sai o volume dos Contos do gin-tonic. Meses depois, em Dezembro, os Novos contos do gin rematavam com uma "Contabilidade final":
"Parece mentira, mas ainda não recebi os rublos moscovitas. E esta, ein! Só tenho coisas que me ralem".
4
Os amigos que ainda têm os livros do Mário-Henrique Leiria têm outros amigos que vão e vêm, que levam livros emprestados, às vezes não os devolvem. Os editores não querem saber e não os reeditam.
A Imprensa Nacional tem mais que fazer.
Não há ninguém que faça a edição crítica das obras completas deste singularíssimo anarco-surrealista?
***
PS.
Talvez porque o surrealismo do Mário-Henrique Leiria tivesse bastante menos a ver com o Breton do que com o Robert Desnos, aqui fica
Le Pélican

Le Capitaine Jonathan,
Étant âgé de dix-huit ans
Capture un jour un pélican
Dans une île d'Extrême-orient.

Le pélican de Jonathan
Au matin, pond un œuf tout blanc
Et il en sort un pélican
Lui ressemblant étonnamment.

Et ce deuxième pélican
Pond, à son tour, un œuf tout blanc
D'où sort, inévitablement
Un autre, qui en fait autant.

Cela peut durer pendant très longtemps
Si l'on ne fait pas d'omelette avant.

Sem comentários: