... incongruentemente, a imagem de um carvalho vetusto,
de largo tronco nodoso,
a despedir-se da folhagem, no Outono.
pags. 154, 155
O priorado do cifrão, da Porto Editora, é o mais recente livro de João Aguiar.
Tem por tema a escrita e a autoria, mas na sua vertente editorial. Por tese, a morte anunciada do autor, figura dispensável e perturbadora das conspirações editoriais.
A intriga não é muito complexa.
Miguel Souto Campos, a personagem principal do livro, é um não muito credível jovem editor da Codex 3, uma casa editora pertencente a um enorme grupo multinacional. Aos vinte e cinco anos sabe latim, ouviu falar de Gibbon e tem um sono desassossegado depois de ter feito amor com a menina mais cobiçada lá da empresa. E bebe chá! Sem querer e sem grande vocação, torna-se o herói de uma paródia ao Código de Da Vinci, de Dan Brown.
Diga-se num parêntesis: já estamos habituados aos livros que, volta e meia, inundam o mercado, colonizam o gosto e, quando os editores têm sorte, inauguram um género.
Tolkien é um dos melhores exemplos, tal como J. K. Rowling ou, para mal do nossos pecados, o próprio Dan Brown, caricaturado por João Aguiar.
Por vezes, como aconteceu com O Senhor dos anéis ou com a saga em sete volumes de Harry Potter, os livros são bem escritos e, embora discutíveis como tudo na vida, engendrados com imaginação e gosto.
Mas outros e talvez melhores exemplos podiam ocorrer-nos.
Deve haver quem ainda recorde o êxito espantoso de O despertar dos mágicos, de Louis Pauwels e Jaques Bergier e da quantidade de sequelas que suscitou. Choveram nos escaparates mistérios da Ilha de Páscoa, segredos dos Templários, enigmas das pirâmides, discos voadores, terceiras visões e poderes da mente... Tudo coisas que, no geral, não resistiriam à mais elementar crítica, mas que se apresentam como ensaios bem documentados, citações de supostos cientistas, imaginárias testemunhas, textos sagrados - de que ninguém viu os originais, claro.
São, regra geral, livros de ficção e de entretenimento que, para mal dos nossos pecados, não se apresentam como tal. Como João Aguiar chama a atenção, não são livros, na antiga acepção da palavra; nem são obra de alguém: são meros produtos para o mercado; o autor, por muito sucesso que tenha, é, também ele, um consumível; pode facilmente ser substituido por outro que aplique a mesma receita para o sucesso.
Bom mesmo será o desaparecimento dessa incómoda figura que é um escritor, regra geral orgulhoso, ciumento da sua independência e com direitos de propriedade sobre a obra.
O ghost-writer, ou melhor, uma equipe deles, virá, mais cedo ou mais tarde, escrever o texto da obra de um escritor fictício, produzido por uma multinacional da edição. Actores profissionais representá-lo-ão em entrevistas filmadas sempre que fôr preciso - e em pessoa na cerimónia do Nobel.
É nestes ambientes um pouco tenebrosos que decorre a aventura do jovem editor Miguel Souto Campos, um ingénuo incompreensivelmente promovido no seio da organização inimiga, um inocente perseguido a tiros felizmente falhados pelas ruas, o desajeitado favorito das secretárias simpáticas e o protegido de misteriosas potências que se não desvendarão até ao fim do livro.
Como o próprio João Aguiar resume, pela voz de uma personagem:
«... Se não soubéssemos o que sabemos, dir-se-ia que há um assassino, um único e sinistro assassino, decidido a matá-lo. Só que... falha sempre! Quer por azar dele, quer por falhas de execução, falha sempre. E você vai andando, mais ou menos impassível, enquanto o assassino pragueja e protesta: merda! Falhou mais uma vez! Palavra, é de comédia negra. Ou melhor ainda: desenhos animados...» (pag. 334)
Nós, aqui no Portugal, Caramba!, estamos em concordar com o resumo. E até acrescentávamos que é no que dá parodiar um mau romance, como o de Dan Brown. Mas foi a opção do João Aguiar. Permitiu-lhe revisitar o Adriano Carreira, a Sara e o Frederico, personagens de A catedral verde e satisfazer um gosto antigo pela novela policial.
Nada a dizer, se não que continuamos a preferir os Diálogos das Compensadas, ou o Navegador solitário.