quinta-feira, abril 30, 2009
quinta-feira, abril 23, 2009
Subsídios para o Livro de Aka (XVI)
"The Virgin started from her seat, & with a shriek"
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- Como te chamas, jóia?, perguntou a Cartomante.
- Não sei, respondeu Aka. Tenho mais de mil nomes.
- Como Nosso Senhor, hem? Não és modesta. E como te chamava a tua mãe, além de minha bonequinha fofa?
- A Mãe foi morta quando eu tinha cinco meses, dizem. Mas a minha primeira ama, a que me deu de mamar, chamava-me Diniza.
- A tua Mãe foi morta? E por quem, minha preciosa?
Aka abanou a cabeça.
- Não lhe posso dizer.
- A mim podes dizer tudo, pequena. Mas não queres, não é assim? Bom! Diniza? Diniza, num dialecto muito antigo que aprendi num sonho, queria dizer «filho de Deus".
- No meu também. Mas «din» ou «djin» junto com «iza», que quer dizer pequenino, é o que se usa para os enjeitados, sabes? Cria de Deus, filhote. Alguém que foi deixado à porta do Pai mais velho.
- Hum-hum? E depois?
- Depois o Pai mais velho decide se a criança merece viver e dá-a a criar a uma ama, a uma mulher que esteja a amamentar. Ou decide que não... A mim podem ter decidido que eu vivesse.
- Que história triste, pequena. Tens a certeza do que contas?
- Não, sabe, «dinisa» também se usa para uma rapariguinha endiabrada, um diabinho em forma de gente. A diferença é que os letrados ocidentais escrevem com «s». Nós usamos a escrita antiga, que não é só fonética.
- E tu, eras um desses diabinhos?
- Ainda sou.
- Seja Diniza, então! Com «z» ou com «s», tanto faz.
Soletrou e foi espalhando cartas em polígono à medida que recitava as letras.
- Ui! Que violência, minha querida. Vês? Esta carta é o teu pai.
Colocou em rápida sucessão mais seis cartas ao lado das anteriores.
- Sim, vejo-te com uma coroa de rainha, diamantes, safiras... e uma espada sobre a tua cabeça. Pés descalços, sobre as silvas. Quem és tu, Diniza? Com esse rosto tapado deves ser muçulmana... Não, espera... és de uma seita que te condenou... que interessante, Deniza: estás condenada à morte! Não acredito que tenhas poderes suficientes para fazer mentir as cartas. Só o Demónio o consegue.
- Eu sou um diabinho, lembra-se?
- Mostra-me as tuas mãos! Consegue-se fazer mentir todo o corpo. Hás-de aprender isso um dia, talvez quando casares, se viveres até lá. Mas, não te esqueças! As linhas das mãos, nunca mentem porque a mentira fica gravada para sempre.
Aka estendeu ambas as mãos, com as palmas viradas para cima e fechou os olhos:
- Why cannot the Ear be closed to its own destruction? - perguntou ela. - Não se preocupe: foi qualquer coisa que aprendi nas aulas de Inglês. Um preto qualquer, como eu.
- Modesta, como sempre, hem? Eu também estudei inglês, rapariga. O William Black só era preto de nome. E tu nem issso. E agora cala-te. Quero ver o que dizem estas linhas.
terça-feira, abril 21, 2009
domingo, abril 19, 2009
sexta-feira, abril 17, 2009
quarta-feira, abril 15, 2009
Subsídios para o Livro de Aka (XV)
- Vraiment superbe! - murmurou contemplativo
sábado, abril 11, 2009
sexta-feira, abril 10, 2009
Ai futebol, futebol... [2]
Todos nós, os que somos já suficientemente antepassados, jogámos à bola na rua, à revelia das leis de então: ia-se comprar a «chincha», havia sempre uma vizinha ajudante de costura que as vendia por cinco tostões - o preço aproximado de um papo-seco na padaria. Era uma bolinha feita de restos de pano compactados no interior de uma meia velha e cosido à volta, uns oito centímetros de diâmetro irregular. Frequentemente não rolava muito bem, sobretudo quando começava a romper -se.
Ao grito «olhó'chui!» desalvorávamos todos a correr. No liceu era a mesma coisa. Vinha o contínuo - «olhó Guerra!» e lá saltávamos o muro, fingíamos estar a jogar ao bilas, fazíamos o ar de «quem, eu? eu estava só a ver...»
Às vezes lá ia um pela orelha, a chincha apreendida; eram os azares da vida, a miudagem da rua aprendia depressa a viver com isso.
Quem não sabe identificar o inimigo, morre depressa. Ou então, torna-se inimigo por sua vez, quando crescer, o que é mil vezes pior.
Com o andar dos tempos, as coisas mudaram um tanto.
As ruas foram definitivamente ocupadas pelos automóveis, os putos já lá não cabem. As pessoas, como se fossem macacos em perigo de extinção, são remetidas para zonas protecção especial: um ou outro parque, umas coisas chamadas circuitos pedonais.
A miudagem já não dá cabo das botas a chutar na chincha. Usam ténis e têm belas bolas de plásticos vários que noutros tempos nos teriam feito arregalar os olhos de admiração.
E, pasme-se!
Até lhes arranjam campos de jogos lá na escola - embora, regra geral, os cubram de betão, que é para as quedas doerem à séria.
E é assim que todo o machinho, por esse mundo afora, tem pelo menos um mínimo de experiência do que é correr atrás da bola.
Acrescente-se a isso umas gordas de jornais ditos desportivos, um par de debates na televisão e aí está um entendido: treinador de bancada, árbitro competentíssimo, dirigente de café. Pode botar faladura, a sua opinião vale tanto como qualquer outra e o que disser, não importa realmente.
Se fosse físico, astrónomo ou médico, a conversar com outros físicos, astrónomos e médicos, usaria igualmente, é evidente, uma linguagem apropriada que supõe o conhecimento prévio dos conceitos. São linguagens prestigiantes, muitas vezes, guardadas ciosamente das intrusões dos leigos. Mas claro, se não querem ficar isolados toda a vida do resto do mundo, também eles terão de ter como que um jargão comunicacional.
É quanto basta.
quinta-feira, abril 09, 2009
Umas florinhas
terça-feira, abril 07, 2009
Ai futebol, futebol... [1]
Para terem uma ideia: As carraças e as pulgas dos cães combatem-se com umas coleiras próprias. Palavra: se houvesse uma coleira anti-futebol, eu usava-a com o mesmo orgulho belicoso com que os adeptos do futebol clube do Porto ou do sporting clube de Portugal enrolam ao pescoço um cachecol azul ou verde, conforme, e vão em grande grita para os estádios.
A nossa vila não era diferente, era só maior.
Tinha bairros, famílias e tinha castas.
Havia Grémios, Assembleias, Tunas e Clubes variados, os de uns, normalmente, claro, não frequentavam os outros.
Quando havia cinema, lá se misturavam todos, no mesmo edifício, mas em zonas distintas. Uns iam para o primeiro balcão, ou, se iam em família, para um camarote ou, vá lá, para uma frisa. Havia ainda, como alternativa, o segundo balcão.
A plateia era a zona da plebe.
Nem a Igreja escapava a estas distinções: ao domingo havia uma missa que era a da gente fina. Os senhores tinham cadeira e genuflexório próprios numa nave lateral e à saída dominavam o adro com os seus grupos, a beleza das senhoras, a riqueza dos trajares. Os outros formavam grupinhos mais pequenos, mais encostados às paredes, circulavam pela periferia.
O fuebol, aparentemente, era a excepção não porque não houvesse também separações. Havia. No nosso campo da bola, chão de saibro vermelho e riscas brancas, só havia uma bancada que corria todo o lado poente do campo. Nela tinham direito a sentar-se, em cadeiras, os sócios com lugar reservado. No cimento sentavam-se os outros. E claro, nas cabeceiras ou no lado oriental, de caras para o sol e a mão direita em pala para não perder pitada, era o peão.
Alternando com o vendedor de «bolachámaricana, idicanela!», o cauteleiro percorria as nossas ruas, a gritar «é prá'mañhã!, olhó cinquenta e oito!» ou «anda hoje, anda hoje!». Semana sim, semana não, quando chegava o sábado mudava de estribilho:
«Peão prá bola, peão prá bola. Olh'é o peão prá bola!» O clube da nossa terra, nessa semana, jogava em casa.
No domingo, pois, com o comércio fechado, era o ritual do levantar mais tarde, do banho semanal, depois a missa e, a seguir, era o cozido à portuguesa ou o bacalhau com todos. Regaladamente repletos, os senhores levantavam-se da mesa um tanto pesadotes e abalavam para o café a juntar-se em pequenos grupos, a dar palpites sobre o jogo. E em grupo lá se iam encaminhando para o campo. Parar em cada esquina para mais uma sentença, mais um argumento, era parte do prazer.Parecia a mais pacífica das gentes.
Uma hora depois era vê-los.
Perdida a compostura, os casacos caídos algures, a camisa desprendia-se dos cintos e as gravatas pendiam amaxucadas. O honesto e generoso pai de família, de rosto púrpura atirava perdigotos para todo o lado enquanto berrava a sua exaltação:
- Partam-me um braço a esse filho da puta, cabrão!
No outro lado, no peão, empoleirado sabe Deus onde, um homem de fato de macaco puído e manchas de óleo que as lavagens não conseguiam apagar, berrava exactamente o mesmo.
Era desta massa que se faziam depois os patriotas e nela as uniões nacionais recrutaram desde sempre os seus apoiantes mais fiéis.
Não acreditam?
Mal o vosso.