"Irmão Leão, mesmo que os Frades Menores dessem por todo o lado um grande exemplo de santidade e boa edificação, mesmo assim escreve e anota com cuidado que que não é aí que está a alegria perfeita."
S. Francisco de Assis
Não me lembro de o João Bénard da Costa ter alguma vez escrito sobre o filme do Louis Malle Zazie dans le metro. Provavelmente fê-lo, mas eu, hélas! não o consigo encontrar por mais que procure.
É pena: o filme é sobre a alegria e este post também.
O João Bénard teria, quem sabe, aproximado o sentimento da alegria à experiência de qualquer coisa que nos transcende, ao momento de uma revelação, uma pequenina epifania ao alcance de qualquer mortal não particularmente dotado para a santidade.
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Não é nada fácil dizer o que é a alegria.
Os dicionários são mais lestos a definir outras coisas, o estado eufórico, por exemplo: uma excitação plena, um bem-estar físico e moral, um contentamento consigo próprio, dizem eles. E acrescentam logo que esse excessivo auto-contentamento é, muitas vezes, irrealista e degenera em delírio.
A alegria, essa é menos óbvia.
Por vezes é indiscreta, ruidosa, como a dos bebedores do Rabelais. Porém, quando lhe falta ao menos uns gramas de felicidade, a alegria amarga na alma e nunca está longe das lágrimas. O choro do bêbado não é bonito de se ver; a sua ira oscila entre o perigoso e o caricato.
Há também uma alegria que é exultação, como, por exemplo, quando se fala na «exaltação da Santa Cruz» ou quando os soldados partiam para a guerra entoando hinos guerreiros. Mas também essa não é a alegria perfeita: ali mesmo ao pé, disfarçada de honra ou de qualquer outra coisa, espreita o fanatismo.
Uma outra é vigor físico, é pujança: a corrida do potro de crinas soltas, o voo das gaivotas nos dias de vento, o canto dos pardais ao fim da tarde. Ou, como diz Gomes Leal, "cantando, rouxinóis louvam os céus".
Talvez seja esta a verdadeira alegria.
Infelizmente, não sabemos o que cantam os pássaros, nem o que dançam os golfinhos, o que sentem as sardinhas quando evoluem como uma só nos seus enormes cardumes.
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Algumas expressões podiam ajudar-nos a cercar o conceito que foge: satisfação, divertimento, contentamento, prazer moral...
Os sinónimos, no entanto, são extremamente ciumentos das suas diferenças.
O «gáudio», por exemplo, oscila entre o contentamento, a satisfação, o prazer, a alegria propriamente dita, o prazer dos sentidos, voluptosidade, e algo de recuadamente derrotista.
O gaudeamus igitur, uma canção ligada aos meios académicos, é um bom exemplo da melancolia que tinge o próprio «gáudio» mesmo quando grita carpe diem, ou seja, curte enquanto podes, man:
"post jocundam juventutem, post molestam senectutem, nos habebit humus"...
(depois da jocosa juventude, da molesta velhice, a terra há-de ter)
A «alacridade» que partilha com a alegria o étimo, parece aproximar-se mais da agitação física, do entusiasmo, e, nesse sentido, é o potro a galopar na planície, os cachorrinhos a fingir que lutam.
A «jocosidade», essa anda perto do riso, do «jogo», da representação, da comédia, do jogral.
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Quando as definições nos derrotam, regra geral, é porque não sabemos demasiadamente bem do que estamos a falar.
E assim, só resta uma solução, esticar o dedo e dizer:
- Pá, um salpicão é isto aqui, olha. É disto que eu estou a falar.
E a alegria, a alegria perfeita de que eu estou a falar é a da Zazie escrita pelo Raymond Quenau e filmada pelo Louis Malle, com a Catherine Demongeot aos pulinhos em Paris.
Cliquem aqui. Se não concordarem, problema vosso.
13 comentários:
magnífico, pena não sabermos ser simples para sabermos da alegria. Olha o R.
Anita
É o olhar que nos diz da alegria (ou da tristeza, ou...). E o olhar do teu desenho é da alegria perfeita, aquela que só as crianças (e os adultas que se deixam ser crianças) sabem deixar-se habitar. Lindo, Tacci, o texto e o riso perfeito do teu desenho.
Jad
Pois é Tacci, não é fácil o tema! Há sempre mais uma porta para abrir para ajudar às definições e há coisas que não cabem nos sinónimos.
Correndo o risco de ser sempre um lugar comum, diria também que a via mais fácil para lá chegar talvez seja mesmo a mais simples: o sorriso de uma criança.
Só agora vou clicar!
Erre, erre mexilhão, Anita?
Jad, o desenho ficou giro, mas a fotografia da cachopinha é um espanto: vale por um frasco inteiro de anti-depressivos.
Graza:
O Louis Malle, se mais não tiver feito na vida, pelo menos deixa-nos a imagem do que o Jogral de Deus nos queria ensinar.
Estou convencido de que o Eça, no «São Cristóvão», também o queria fazer: a meu ver só falhou em não ter dado suficiente relevo ao riso.
Será?
Sim também o R. quando era mexilhão :))) Mas por acaso referia-me ao outro, que só é mexilhão quando anda pelos campos
Pois, pois, Anita, pois...
Ontem encontrei uma miuda com este sorriso. Só me apeteeu fotografá-la mas a ligeira hesitação da mãe fez-me recuar caminho
anita
sabes como acaba o filme? A mãe da Zazie pergunta-lhe se ela se divirtiu e ela responde: "J'ai vieilli"
Por aqui porque quem comenta merecia saber
anita
Conheço, já tive este ar e às vezes ainda tenho. Esta é a expressão e a melhor definição da felicidade: plena e efémera, como ela é.
"Who I am?"
Anita:
A frase é bonita, claro, e fica bem no fim do filme.
Mas eu não teria posto a Zazie a dizê-la.
A alegria perfeita é uma becazinha de eternidade porque sai fora do tempo. Ninguém envelhece no riso. Ninguém envelhece nos momentos de eternidade.
Não é?
Anónima:
Creio perceber o que dizes porque já vi essa alegria num rosto, num momento muito especial.
Evidentemente, não sei quem és, mas és bem vinda à mesma.
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