quarta-feira, agosto 26, 2009

Quem pensa não casa (II)

O que é um casamento?
Sabem?
Nós aqui no Portugal, Caramba!, tirando alguma prática (mas há quem tenha bem mais) não temos grandes certezas.
Nas relações mais ou menos íntimas entre as pessoas, há de tudo. Há as «de papel passado» e sem papéis - mas também há seres humanos que os não têm e não deixam de ser gente. Há a coabitação, breve, quantas vezes, e relações sem coabitação que duram décadas.
Tudo, mesmo tudo: desde a simples amizade colorida a «o homem dela», «a mulher dele», os «amigados» e os «juntos»...
Até o célebre, "ah, soutor juiz, era a mulher dele, atão não era, ele batia-lhe e tudo..."
Onde - e, mais importante ainda, para quê - traçar os riscos, as fronteiras?
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Mas, pronto, quem não sabe, vai ao dicionário.
Corre-se o risco de encontrar apenas as definições do senso comum, uma ou outra noção de pendor legal, mas é verdadeiramente instrutivo.
Vejamos:
A Infopédia, aqui à distância de dois cliques, considera-o, um tanto inocuamente, um "contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família em conjunto".
Não é muito dogmático, não prescreve género nem sexo dos nubentes, mas lá vem, como quem não quer a coisa, a exclusão dos casamentos múltiplos, poliândricos, poligâmicos ou ambos ao mesmo tempo.
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Mas recuemos um pouco no tempo:
O meu Diccionário Prático Illustrado, de Jayme de Seguier (Lello & Irmão, 1944), por exemplo, não é tão permissivo.
Os tempos eram outros, por isso o que encontramos é:
"união legítima entre homem e mulher. Cerimónia nupcial."
E acrescenta:
"Fig. Reunião, associação".
Para evitar as confusões, distingue a seguir o casamento religioso daquele que é contraído perante a autoridade civíl, sem a intervenção da Igreja.
Anotemos: em meados do século passado, a união devia ser legítima, ou seja, ter "as qualidades requeridas pela lei" para poder ser considerado um casamento.
«Legítimo», dizia-se sobretudo "da união conjugal consagrada pela lei, e dos filhos que nascem dessa união..."
Por sua vez, «legítima», no feminino, podia ainda ter como primeiro significado "a porção dos bens, de que o testador não pode dispor por ser aplicada pela lei aos herdeiros em linha recta..."(1)
Reparem: "a lei aplica".
É um dicionário precioso que nos coloca desde logo no domínio das heranças, da legitimação dos filhos que herdarão a legítima e por aí fora. Mas não é o único que se deixa estar aqui pelas nossas estantes.
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Um outro, mais antigo, o Simões da Fonseca, (H. Garnier, Livreiro Editor, 6º. edição melhorada, Paris-Rio de Janeiro, sem data, mas certamente de meados do século XIX em diante), talvez por ser brasileiro, é muito mais simples: "contracto, e cerimónias religiosas e civis do matrimónio". Não deixa, no entanto, de acrescentar à noção de «contrato», a de «dote», os bens que se dão à pessoa que se casa ou entra para o convento.
O lado patrimonial, portanto, tal como a «legítima».
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Continuemos.
A etimologia também dá, por via de regra, indicações interessantes; as palavras costumam revelar acerca dos conceitos mais do que a militância conservadora gostaria. O «casamento» não podia fugir à regra.
Segundo José Pedro Machado, no Dicionário etimológico da língua portuguesa (Horizonte, 1987), «casamento» vem de «casar» e «casar» de «casa», "pois o acto do matrimónio traz o estabelecimento de nova casa".
«Casa», por sua vez, liga-se a «casal», "relativo, pertencente à casa; substantivamente, limites de uma propriedade; quinta, fazenda, herdade, granja; por ex.," acrescenta Machado, "os donos de qualquer dessas propriedades rurais; marido e mulher, par".
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O castelhano «casamiento» é muito próximo do português.
Mas, franceses e ingleses, com o «marriage» apontam-nos mais no sentido de «maridança» que Sguier, pudicamente, explica como "vida de casados".
Machado, porém, escudado pela boa antiguidade, avança citando do sec. XV: "...e que depois do dito recebimento a tevera sempre por sua molher ataa o tempo de sua morte, vivemdo ambos de consuum e fazendosse maridança qual deviam".
Quanto a «casamento», estamos conversados: casa, legítima, dote e maridança...
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Resta o Matrimónio.
Não sei quando instituiu a Igreja de Roma este sacramento. Mas a palavra escolhida para o designar é bem reveladora da cofusão que se tem gerado em volta destes conceitos. «Matrimónio» liga-se, diz ainda o precioso Machado, com «madriz», "adj. Do lat. matrice-, «reprodutora, fêmea; seio, matriz»". Receio que o matrimónio, civíl ou religioso, fosse, de origem, um contrato de procriação.
Não é engraçado? Diz-se que dois jovens desejam contrair matrimónio - o que tem a ver com a mãe - e não que desejam contrair património.
Supunha-se, no entanto, que essa era a parte do pai.
Um casamento, por seu lado, parece-me apenas um contrato de coabitação, complicado, é verdade, pela suposição dos legistas de que havia filhos e bens que seriam, mais tarde ou mais cedo, transmitidos.
Quero eu dizer:
Todo este imbróglio provem de se manter a confusão, inútil nos nossos dias, entre matrimónio e património, casa e pucarinho, juramentos de fidelidade até à morte, direitos de adopção...
E tudo isto acrescido ainda do estado que quer à força cobrar mais impostos aos casais, sejam eles o que forem: casamentos abertos ou fechados, múltiplos ou monogâmicos, hetero ou homo: seja o que for, o estado cobra e ponto final.
Não é tão querido?
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1) Segier não o acrescenta, mas, em "a minha legítima", p. ex., o nome designava sobretudo a "esposa", por oposição, claro, à amante, à amásia, à amiga, a "teúda e manteúda". Não era, na minha humilde opinião, uma expressão muito respeitosa.

2 comentários:

Anónimo disse...

Se mal pergunto: a que conclusão chegaste?
Badesse

tacci disse...

Não, não perguntas nada mal.
Ou, pelo menos, é o que eu também me pergunto:
Pois sim; mas e agora?