"Sabe, no fundo
eu sou um sentimental .
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo (além da síflis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar,
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora."
Fado Tropical, Chico Buarque, Rui Guerra
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Querem saber?
Ando por aí, de supermercado em supermercado, de prateleira em prateleira, à procura.
Eu juro que já a vi, num daqueles dias em que devíamos bater em nós mesmos, de tão burros que estamos. Porque é que não a trouxe logo?
Era fim de mês, se calhar, o dinheiro já se fazia escasso?
Mesmo assim. Foi imperdoável.
Chamava-se Concha y Toro, Casillero del Diablo, era uma garrafa igualzinha, excepto na data, claro, a uma outra, de saudosa memória, trazida do Chile e que guardávamos para celebrar o derrube do general Augusto Pinochet.
Não chegámos a bebê-la: morreram ambos, o vinho, inocente, na sua garrafa, cansado de esperar, o Pinochas na cama, os pecados perdoados, quem sabe, por algum desses padres anti-operários, anti-comunistas, por causa de quem, ao cheiro dessa canela, Cristo se despovoa.
Mas se o Pinochas era um reles ditador, era também o símbolo de todas as reles ditaduras sul-americanas.
Culpa de Neruda? De Isabel Allende? De Spúlveda?
A Argentina e o Brasil tiveram, certamente, os seus escritores. Não terão alcançado a notoriedade, as suas denúncias ficaram, talvez, abafadas por livros como o De amor e de sombra.
Ou fomos nós que nos deixámos ofuscar.
Quase nos esquecíamos dos Videla, dos Castello Branco.
E mais.
Não passavam, todos eles, na sua empáfia condecorada, de testas de ferro, marionettes nos palcos da sul-américa. Mas de tal modo concitavam o ódio, quase nos faziam esquecer o Henry Kissinger, as secretarias de estado, os Nixon e os Ford.
Não chegámos a beber a Concha y Toro primeira.
Mas agora que o Videla, já condenado a prisão perpétua, indultado e novamente preso em prisão domiciliária, agora que vai novamente a julgamento, meu Deus!
Desta vez, não escapa. Quero uma Concha y Toro segunda para celebrar, pronto!
E, talvez não devesse dizê-lo, mas sei aí de um Porto, quase com cem anos.
Adivinhem quando é que a gente o vai beber.