terça-feira, janeiro 16, 2007

Vimioso, Caramba!

Como se chamava o pequeno cinema à ilharga do edifício do Éden, no rés-do-chão?
O homem que ali vendia gravatas, andando para trás e para diante no passeio, com as gravatas dependuradas de uma barra sobre o peito, a barra sustentada por uma correia que lhe passava por detrás do pescoço. E uns conhecidos rapazes de boas famílias, irmãos e desordeiros, metidos em lides tauromáquicas e automobilísticas, que se divertiam a fingir que escolhiam uma gravata, tirando uma após outra do expositor e lançando-as sucessivamente no chão. No chão onde certo dia um daqueles valentões andou de gatas, a apanhar as gravatas, com uma pistola apontada à cabeça pelo vendedor ambulante.
Sérgio de Sousa, Errar

12 comentários:

Gi disse...

Não me lembro desse vendedor mas lembro-me de outros tantos. É o relato de uma história verídica ou é ficção?
Desde sempre que existem os jovens rebeldes, o (bons) malandros, os brincalhões, o que me parece é que estes últimos estão em vias de extinção...talvez porque as brincadeiras deixam de o ser quando se achincalham terceitos.
Esse deve ter apanhado um sisto valente!
O desenho como sempre, uma delícia

tacci disse...

Esta história faz parte da lenda Lisboeta, como muitas outras histórias de provocações e de pancadarias. Contavam-se os feitos dos diversos bandos, por exemplo, o "grupo do Salvação Barreto", um famoso forcado, suponho que por volta dos anos cinquenta ou sessenta. Eram bandos capitaneados por jovens da melhor aristocracia, monárquicos miguelistas e protegidos pela "situação", mas que podiam incluir fadistas, faquistas, proxenetas, gente que ia e vinha ao sabor das fantasias do momento, das camaradagens de copo ou de cama. Volta e meia armava-se um burburinho, ciúmes, despiques ou só alcool, havia cadeiras pelo ar, garrafas e mesas partidas,um bar, um cabaret ou uma casa de fados em destroços... o gerente aceitava a garantia de que no dia seguinte pagavam tudo. Os pais e as influências políticas, o muito dinheiro, abafavam os protestos, as queixas das vítimas.
O cenário era mais ou menos este. Os episódios, como o do Senhor D. Fulano de Tal e Tal a apanhar as gravatas pelo chão, são, se calhar, apenas lendários ou, no mínimo, compostos e recompostos ao longo das inúmeras narrações: a arraia miúda vingava-se da sua impotência narrando a humilhação dos agressores.
Ainda conheci descendentes destas personagens, mas não passavam de pequenos imitadores sem grande garbo, ou assim me pareceram.
Também não pareciam muito interessantes: mais turbolentos do que rebeldes, no fundo eram conformistas, iam á missa ao domingo acompanhar a Avó e vigiavam ferozmente os pretendentes das irmãs...
Pronto, tenho de me calar para não ficar aqui até amanhã.
Um abraço, Gi.

Anónimo disse...

Conheci há tempos um exemplar desses 'meninos' que vêm referidos no livro do Sérgio Sousa.

Tem, hoje, sessenta e poucos anos de idade, herdou as terras dos pais, assistiu ao declínio da agricultura e das casas que dela se sustentavam.

Ainda acredita na estratificação social...

Relatou-me algumas dessas noitadas lisboetas, entre fadistas e toureiros, embora tenha omitido os proxenetas...

É um velhote porreiro...ao ouvi-lo tendemos a pensar que muitas das barbaridades que diz são coisas de um velho desactualizado.

Eu, que sempre cresci a ouvir as histórias dos 'outros' - os que volta e meia eram metidos dentro por afixação ilegal de cartazes anti-regime - acho curioso ouvir sobre o 'outro lado da história'.

Não que não devessem ser jovens odiosos, muitos deles...mas a distância do tempo, e o não ter vivido essas histórias, deixa-me incapaz de lhe guardar rancor.

Enfim...escrevo apenas porque o identifiquei, ali, no meio dos que tentavam humilhar o vendedor de gravatas...

tacci disse...

Meu caro Gilgamesh, espero bem que não guarde rancor ao seu amigo, porque não foi ele quem inventou a tradição a que eu chamo «vimioso». Mais ou menos, de acordo com as circunstâncias, todos (pelo menos os que têm mais de cinquenta anos) fomos contaminados por esse modelo: a virilidade media-se em pancadarias e bebedeiras, na criadita desflorada e nas excursões a Lisboa aos cabaret e às casas de «meninas». Nenhum de nós era homem, com H grande, entenda-se, antes destes feitos gloriosos; partir três costelas ao tentar pegar um toiro, dever dinheiro, espatifar um carro, ser apanhado numa rusga - e subornar os chuis - eram coisas que afidalgavam bastante. Era assim, pelo menos desde o Sr. D. João IV. A CEE decretou-nos a extinção ao liquidar o proteccionismo que nos defendia as quintas. Agora, que os solares já foram vendidos, vive-se em T-2s, escreve-se em jornais, publica-se romances levezinhos, os que ainda têm cunhas de peso são assessores na Banca e tentam ser comedidos para não estragar o BMW. Os outros, às vezes têm blogues.
É a vida, dizem (mas eu não acredito).
Um abraço para si, Gilgamesh, e apareça sempre.

Anónimo disse...

Longe de mim guardar rancor a quem quer que seja, caro Tacci...

Queria mais salientar o facto de me parecerem tão distantes esses tempos de rufia...

Enfim...cada geração com os seus ritos de integração social...

Hoje somos considerados homens com "H" grande quando conseguimos, por fim, comprar um T4 onde albergar, pelo menos, duas criancinhas...juntamente com a carrinha Mercedes ou Audi e as férias em Cuba ou Brasil.

Apesar de tudo, preferia esses tempos que descreve o Tacci e o Sérgio de Sousa...

Pelos vistos as qualidades requeridas eram, apesar de tudo, relacionadas com actos épicos de coragem, malandragem, copos e engates... e não tanto de carteira!

Claro que continuarei a aparecer e a espreitar essas aguarelas, Tacci!

Abraço!

Anónimo disse...

Pergunto-me se a UE, ou qualquer outra instituição que escolhamos, terá poder para extinguir essa raça que descrevem. Poder-se-ão ter mudado para um apartamento, mas garanto-vos que é em condomínio fechado com piscina e campo de ténis.
É que eu conheci muitos exemplares dessa raça de malandros fidalgotes, pegadores de touros e jogadores de rubgy, frequentadores de casas de meninas. E nenhum conta mais de 35 anos actualmente. São pais de família (mas não deixam de frequentar as meninas, claro!), têm cargos bem remunerados nas empresas da família e amigos, e aposto que ainda verei por aí uns quantos no mundo da política daqui a mais uns 20 ou 30 anos. De onde é que os conheço? Foram meus colegas durante toda a minha passagem pelo Instituto Superior de Agronomia – pelo que se deduz que as ditas propriedades latifundiárias que justificam a existência de um agrónomo nas hostes familiares ainda existem por aí algures.
Enfim, escrevo só para que não pensem que é uma raça em vias de extinção. Não é! Está de saúde e recomenda-se. Para o bem e para o mal.
Um Abraço.

tacci disse...

Olá, Hainnish. És capaz de ter razão. A percepção de que os Vimioso estão a desaparecer pode ser um erro de perspectiva, devido à idade, talvez. Ainda se entretêm em bandos a partir as discotecas ou, ao menos nisso estão mais civilizados?
Bjnhs.

tacci disse...

Meu caro Gilgamesh, olhe que ainda o convido para escrever aqui, a meias com a Hainnish, o perfil do Vimioso actualizado. Concordo consigo em que talvez o antigo Vimioso fosse mais interessante do que o actual. Tinha, pelo menos, um traço inestimável: orgulhava-se de ser capaz de se relacionar fosse com quem fosse, do mais popular até à Raínha (quando havia, claro).
Um abraço.

Anónimo disse...

Daquilo que conheci, creio que esses herdeiros da tradição do Vimioso não sejam minimamente tão coloridos como os seus antepassados, pelo menos as gerações mais recentes.

Como dizia, rapidamente se tornam uns enfatuados empresários, bancários, gestores, surfistas, membros de juventudes partidárias, entre outras personagens.

É que hoje, nem as autoridades nem os media se compadecem com as fidalguezas de ninguém. É que determinados episódios épicos de tropelias e copos partidos já não ficam como "desvarios da rapaziada", censurados apenas pela meia dúzia presente ou pelas narrações da arraia-miúda. Rapidamente se tornam capa da VIP ou da Hola, ou acabam numa qualquer esquadra de polícia lisboeta.

Abraço!

Anónimo disse...

Confesso que lhes perdi o rasto ao abandonar a faculdade. Mas recordo-me de serem eles a constituírem os bandos de arruaceiros nas festas universitárias. Bebiam o triplo dos restantes (que se dividiam em diversas”castas” mas que raramente eram tão turbulentas quantos eles), e partiam copos por todo o lado. Depois desapareciam em bando não sei para que destinos.
Actualmente lá terão os seus empregos yuppies e as suas famílias formadas, mas nem por isso deixarão de ter as suas farras nos seus sítios de eleição.
E pergunto-me se casas como o Elefante Branco, e outras da mesma estirpe que desconheço, apresentarão queixas dos eventuais desacatos. Não os calarão, porque a manutenção da clientela é mais importante que uma redecoração de vez em quando, especialmente se patrocinada pelo infractor depois de lhe passarem os vapores alcoólicos?
Que estão menos coloridos que em gerações passadas, sem dúvida! Mas pergunto-me se, em vez de mais comportados, estes senhores não estarão apenas mais dissimulados. E claro, funcionam como um grupo coeso, protegendo-se mutuamente. É que também eles sabem que é mais difícil a sociedade actual compactuar com os seus comportamentos. E o que fariam as amantíssimas esposas? É que hoje já se sentem com direiros a divórcio e tudo.
Enfim, pelo que conheci destes senhores, acho este cenário francamente mais provável.

Um Abraço.

tacci disse...

Meu caro Gilgamesh:
Creio que tem razão. Suponho que a classe social de onde vinham estes fenómenos continua e que protege os seus interesses como protegia antigamente. O que já não faz, ou, pelo menos, não fará tão frequentemente, é dar cobertura aos seus rebentos mais turbulentos.
É a vantagem - se vantagem é, claro - do jornalismo tabloide e da privatização da segurança. Ouvimos falar da prepotência dos porteiros e quejandos de certas casas, da luta incendiária entre patrões de casas de alterne e de prostituições várias. Não ouvimos falar dos jovens ribatejanos da lezíria que cavalgam pelos largos hectares, e deixaram de frequentar os bares do Cais do Sodré. Mas também, e isso é um progresso de facto, as meninas com quem namoram recusam-se a permanecer virgens e detestam que eles frequentem contaminações prováveis: são muito mais conscientes do risco da Sida ou da hepatite B do que eles.
Se os queremos ver temos de ir às casas de fado mais, como dizer? «In»? Eles são fadistas, muitas vezes, cavaleiros tauromáquicos quando conseguem. Elas dirigem uma revista de moda ou de decoração, ateliers de moda ou de joalharia, casas de chá onde se encontram...
Receio ter ultrapassado a objectividade e ter entrado pela literatura. O melhor é não dizer mais nada...
Um abraço, Gilgamesh.

tacci disse...

Hainnish:
Estou convencido de que a política de casamentos - o primeiro, pelo menos - ainda obedece a interesses patrimoniais, de aliança e por aí fora. Isto não obriga a que os casamentos se desfaçam, claro. Mas os jovens machos rapidamente se transformam em frequentadores da prostituição de luxo, se a tanto o património alcança, de qualquer outra se tiver de ser. A boa esposa, essa, sem reclamar o divórcio, opta por ter os seus próprios namoros. Dir-se-ia que foram infelizes para sempre; mas não. A vida é assim, eles são homens e fazem o que sempre fizeram, nós, as esposas, as guardiãs da virtude familiar, o que a sociedade e os filhos nos deixam.
Não será?
Confesso não saber muito bem. Mas não está mal de todo, pois não?
(É por causa desta imaginação galopante que prefiro as citações de autores portugueses: alguma segurança sempre me vão dando...)
Beijinhos para ti.