sexta-feira, março 30, 2007

O cão que jogava xadrez

Olhe, minha jovem senhorinha, velha era a sua Tia e casou-se.
Mas como, coitadinha, não era maluca, passou a vida a aspirar a mesma alcatifa, com o mesmo aspirador e o seu Tio todos os dias calçava as mesmas pantufas para não a sujar.
Fizeram amor quatorze vezes (embora não muito de seguida) e daí nasceu o seu Primo Carlinhos, pósmaturo com seis quilos e seicentos e um QI de 148. Aos doze anos, contemplando o Pai (o seu Tio por afinidade) que dormia a sesta no sofá forrado com um pano azul, o ventre subindo e descendo com um som assobiado, e a Mãe (a sua venerável Tia) que tirava o fio ao feijão verde com um alguidar cor-de-rosa, decidiu:
- Vou arranjar um cão.
O problema era arranjar um que jogasse xadrez e não se importasse de ser aspirado todos os dias para não espalhar pelos na alcatifa.
Ao sair da escola, esmurrado um mangas que lhe chamara gordo, dirigiu-se ao canil municipal. Teve de bater à porta uma data de vezes até aparecer uma garina muita grande, muita corada, com muita mau-humor, a ajeitar os botões dos jeans e com uma respiração que parecia a do Zé Nesgas quando estava com um ataque de asma.
- Está doente? - condoeu-se o Carlinhos.
- Quéquetuquerezóputo?
- Quero um cão, um que jogue xadrez e que não se importe com o aspirador para não largar pelos pela alcatifa toda! - explicou o Carlinhos.
A garina fungou, uma coisa que a Mãe (a sua Tia, como já referimos anteriormente) dizia sempre que era feio e não se devia fazer. O Carlinhos extraiu do bolso um lenço de papel já usado e perguntou se a senhora precizava.
- Pisga-tó mongas! - disse a garina, ainda com pior humor.
- Mas eu quero um cão que jogue xadrez e não s'importe...
- Tá bem, desampara-m'a loja. Olha aí, pra lá dessa porta, há uma data de corredores com cães e gatos. Quando achares alguma coisa ficas quieto até eu ir lá ver de ti.
O Carlinhos ficou um minuto a olhar para ela que desaparecia à pressa na casota envidraçada onde parecia agitar-se alguma coisa.
- Fogo! - pensou o rapaz - Até parecia a Stora de Inglês quando está c'os sangues!
Encolheu os ombros robustos e abriu a porta. Um cheiro agoniante e um coro de ladridos chegaram-lhe de imediato, vindos das gaiolas de rede que faziam um lado e outro do corredor que se lhe abria na frente.
(continua no próximo número, se Deus quiser)

4 comentários:

Gi disse...

Tacci,
História doida Tacci? Olhe que eu adoro esta saudável loucura, faz-me sentir que faço parte deste mundo de loucos ... mesnos desenquadrada :) Doida não, surrealista s.f.f. . Aguardo ansiosamente as cenas do próximo capítulo.

Um beijinho e bom fim de semana

Pequena nota: 14 vezes? Até pensei que o Carlinhos iria ter 13 manos. Não devia ser assim?!... :O)

Hainnish disse...

Muito folgo em te ver de volta aos escritos, meu caro! Mesmo se alucinados!
Nada como ilustrares-te a ti próprio em vez de andares a ilustrar os textos dos outros (excepto se forem os meus, claro!).

Um beijo.

tacci disse...

Catorze, Gi? Claro que não, a Mãe do Carlinhos é um tanto frustrada, mas não é parva. O Pai do Carlinhos esse é que é um tanto subnormal, como ao diante se provará se Deus quiser, o Engenho e a Arte deixarem cair aqui um pozinho e a Fantasia não fugir para outro lado qualquer.
Um beijinho, Gi.

tacci disse...

Olá Hainnish. A volta aos escritos acontece de vez em quando; se eu soubesse onde é o balcão do atendimento, ia lá mais vezes encomendar duzentas gramas de inspiração, mesmo que tivesse de preencher os impressos em triplicado. Assim, olha, contento-me com o que me mandam. E quem ilustra o que pode, já vai com sorte, não é?
Beijinhos.