Carlos Vale Ferraz,
Nó Cego, 1982
4ª. Ed., Casa das Letras, 2008
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1.
Nó cego é um romance perturbador.
Desde logo, porque se lê de um fôlego. E depois, porque, caso raro na literatura portuguesa que eu conhço, se trata de uma epopeia a que não falta sequer o episódio da ilha dos amores (Cap. 6, Na ilha do sonho).
N'Os Lusíadas, ensinavam-nos os mestres, o herói, ao contrário da Eneida, é colectivo. (Com as maiúsculas obrigatórias:) é o Povo Português. Em Nó cego, mais discretamente, é apenas uma companhia de Comandos.
Numa linguagem de cuidadosa simplicidade, o que se narra são as aventuras e desventuras daquilo a que se chamará, creio, o seu «espírito de corpo».
Um Capitão, uns quantos Alferes, cento e poucos homens que a uní-los tinham apenas frases: o comando não tem fome nem sede, o comando não deixa os seus para trás, o comando mata em silêncio...
Nem todos eram anjos, decerto, e Carlos Vale Ferraz não o tenta disfarçar. As referências ao passado de jovens milicianos, de soldados provenientes de meios muito diversos, dão-nos o retrato dessa diversidade bastante menos do que inocente.
Uma «puta de companhia!», como a define o próprio Capitão, a consciência do colectivo. «Paneleiros, chulos, ladrões, seminaristas, filhos-de-família, vadios e ando eu a bater-me para manter esta merda junta!» (pag. 311)
Gente normalíssima, no fundo, num país que se pretende de brandos costumes, mas que, deixada à solta, mata velhos e crianças, viola mulheres e tortura prisioneiros antes de os matar também.
Vale Ferraz narra como se foram tornando num bando de criminosos de guerra para quem, a começar pelos oficiais superiores, e a acabar nos soldados, «a Convenção [de Genebra] não passa de uma hitória de fadas», como explica o Capitão a um guerrilheiro capturado: «Para o meu Governo vocês são terroristas, e eu sou o senhor absoluto da tua vida.» (pag. 323)
2.
As epopeias guerreiras costumam ser trágicas: o guerreiro que enfrentou com bravura a morte em combate parte para o Valholl de Odin onde o espera o combate final e o fim do mundo.
Também Nó cego acaba com a morte do herói.
A companhia de comandos é desfeita no fim do romance, os soldados, após o combate pela tomada da Base Gungunhana da Frelimo, estavam «de rastos», já não era possível levá-los «a lado nenhum».
"- Não são peças velhas de um motor que gripou", argumentava o Capitão. "- Ao menos, deixem-nos juntos a jogar às cartas ou à pesca, não nos espalhem cada um por seu lado..." (pag. 345)
Mas eram.
A Companhia foi desmantelada como se não passasse de uma Berliet avariada, reduzida a um esqueleto à beira do aquartelamento. Canibalizaram-se as peças que ainda podiam servir, uma condecoração aqui, uma promoção acolá.
Significativamente, a sua consciência, espírito de corpo ou alma, como se queira, representada pelo seu Capitão, termina num apartamento no Algarve, o paraíso possível para os guerreiros dos nossos tempos. Lá esperarão pelos novos combates porque não há outro destino para eles.
3.
Nó cego é uma parábola incómoda.
Primeiro porque como que nos culpa da morte daquele corpo.
Não importa se o «General K», «comandante-chefe de Moçambique» tinha sido ou não um responsável daquelas guerras. Assumindo que se tratava de Kaulza, um dos homens que denunciou a tentativa de golpe de estado ou de pronunciamento militar, como se queira, de Botelho Moniz, então ele foi um dos grandes responsáveis pelo desencadear de todos aqueles massacres que ficaram por julgar e que Vale Ferraz, discretamente embora, não oculta. «K», no romance representa a sinuosidade do político que usa os seus homens exclusivamente para os seus próprios objectivos extra-militares e que os trai logo que, como um velho motor, deixam de ser manejáveis. Não representará «K», para o autor, a própria Pátria?
E a parábola incomoda ainda, em segundo lugar, pelos valores que apresenta. Nós sabemos que a traição não é bonita; mas a Companhia que foi traída, também não o era.
Para recordar um só exemplo, a pags. 211 e 212, Vale Ferraz narra um episódio provavelmente verdadeiro, porque, com variações ainda menos dignificantes, à altura foi contado por todo o lado, pelos soldados que iam voltando. Trata-se da emboscada do soldado Lopes:
"Atirou-se de faca de mato na mão, «o comando mata silenciosamente», sobre um novelo de gente caída no chão. Exibiu diante dos olhos o punhal com a lâmina vermelha de sangue, «um punhal de comando», voltou a enfiá-lo no corpo de uma negra, depois no «manacho» de quatro ou cinco meses que chorava agarrado à mãe morta.
- Que estás a fazer?
O Lopes fitou, espantado, o capitão. Baixou os olhos para o cabo da faca, ainda espetado nas costas da criança, e respondeu:
- Estou à procura do coração, a mãe está morta e ele berra muito alto, meu capitão."
4.
Aqui, no Portugal, Caramba! somos pacifistas quêbê, anti-militaristas tanto e tão militantemente quanto podemos.
Sabemos que, como diziam as canções de antigamente,
tant qu'il y aura des militaires, soit ton fils, soit le mien,
il y aura jamais sur terre pas grand chose de bien,
pas grand chose de bien ... (1).
Infelizmente, poucos anos depois de composta esta canção, a II Guerra mundial, como ficou a ser conhecida, havia de provar à saciedade que os pacifistas sabiam do que falavam. A Guerra de Espanha, ali mesmo ao lado, com os seus viva la muerte, era um bem triste exemplo.
Infelizmente, ter razão não serve para nada.
A maioria dos anti-militaristas, dos opositores aos planos bélicos quer de um lado, quer do outro, acabou mal. Fuzilados uns, em Belsen ou Dachau outros, podemos supor que bastantes, atirados para a Sibéria e muitos, muitos fugidos, exilados, perseguidos nos empregos, nas suas vidas.
A guerra é o mal absoluto.
Mas há sempre alguém, um militar armado em político, um político que se julga militar, pessoalmente muito boa pessoa até, que finge ignorá-lo. Chorará a necessidade imperiosa, o dever de consciência de a desencadear. E os demónios da guerra serão soltos. Seguir-se-á o habitual cortejo das destruições, da violência gratuita, dos danos colaterais.
Se for o chefe de um país vencido, ou pequeno, ou pobre, poderá ser acusado perante um tribunal qualquer, politicamente correcto que perseguirá Sérvios e esquecerá Bósnios. Se for de um país grande e rico, concederá a imunidade às empresas de segurança que lhe fornecem mercenários, ignorará massacres e desmandos dos seus próprios soldados.
Portugal, que não era grande nem rico, apenas como um capataz defendia riquezas de que não beneficiava, envolveu-se em várias guerras simultâneas, contra os povos de quatro das suas colónias: Angola, Moçambique e, embora com uma frente única na Guiné, os Caboverdeanos também ali lutaram pela sua independência.
Mas ninguém foi julgado.
É ao Capitão da companhia que cabe, uma vez mais, em conversa com o médico, tirar a moral da parábola:
"- O mal é esta ser a guerra do vocês. Ninguém a considera sua. É filha de pai incógnito.
O médico riu-se.
- É uma guerra filha da puta." (pag. 138)
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(1) Não foi exactamente assim que Rosa Holt, poetiza alemã anti-nazi, a escreveu em 1935. Mas foi assim que eu a aprendi trinta anos mais tarde. Como há quem considere uma perda de tempo saber francês, aqui fica uma tradução mais ou menos aproximada:
Enquanto houver militares, seja o teu filho, seja o meu,
Nunca há-de haver na terra coisa alguma de jeito.
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