quarta-feira, junho 10, 2009

Wiseguying

José Gil, Em busca da identidade - o desnorte, Relógio d'Água, 2009
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João Miguel Tavares, "Cuidado com os nomes que chamam aos vossos filhos", Notícias Magazine de 7 de Junho, pag. 82
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Não quero que ninguém venha ao engano: este post é acima de tudo sobre um senhor, João Miguel Tavares de seu nome, jornalista freelancer dizem, que assina a página "Vida familiar" no Notícias Magazine de 7 de Junho último.
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É uma página curiosa.
Ao que me pareceu - e li-a atentamente mais de uma vez - o João Miguel Tavares vem a público mostrar a sua profunda indignação por não dever chamar, ternurento como é, «meu querido crapulazinho, meu g'anda sacaninha» ao seu filho Gui.
Pois quê?
Um pai já não pode dar um beijinho a um filho quando ele rasga os jornais do papá?
Já não se pode babar de puro gozo com as pequeninas malandrices do rebento?
João Miguel Tavares não diz e, provavelmente, não o pensará. Mas ficou-me a impressão de que, para ele, cuspir na Tia Ermelinda que, coitadinha, tem bigode, ou bater na Mãe que lhe recusou o equivalente a uma bola de Berlim antes do almoço, são pecadilhos que terão de ser reprimidos com um simples «anda lá, meu malandreco». E pimba! Um beijinho na bochecha.
Mas isso, como ele próprio reconhece, é porque não percebe nada de Filosofia.
Parece-me um facto: o João Miguel Tavares terá alguns defeitos, quem sabe, mas não o tenho na conta de mentiroso. E todo o texto da "Vida Familiar" o confirma.
Do opúsculo de José Gil - e ninguém é obrigado a escrever sempre em quantidade, só, por respeito a si próprio, em qualidade - João Miguel Tavares apenas nos dá conta de uma coisa que qualquer professor, qualquer psicólogo ou educador minimamente atento sabe de ginjeira: que, para a criança, a atitude dos pais é muito mais significativa do que as palavras proferidas. Bem podemos ralhar com a criança, dizer-lhe «isso não se faz» se o tom em que o fizermos for o primeiro e claríssimo desmentido das nossas palavras.
Para Gil, esta tolerância excessiva, mais não faz do que mostrar à criança que a malandrice, a pequenina trafulhice a meio caminho da desonestidade, é mais do que permitida; de facto, é desejável, o único meio para vir a ser um «chico-esperto» de sucesso numa sociedade de «chicos-espertos», governados pelo «chico-espertismo».
E, por curioso que pareça, não sendo, como ele próprio diz, um Filósofo, João Miguel Tavares mostra claramente que o percebe. Percebe que o chico-espertismo é um conceito central no modo como vivemos a cidadania em Portugal. Central, mesmo que não se apresente com a dignidade de uma expressão latina ou, o que seria ideal, americana (wiseguying, por exemplo, não sei se daria, mas que era mais cool, era).
Percebe. Mas o tom de simulação per contrarium (uma das formas mais fáceis da ironia) esse, diz-nos que não aceita.
Diga-se: não acredito que ele, Pai extremoso, deixe o Gui andar a correr aos uivos no restaurante incomodando toda a gente ou que lhe ralhe chamando-lhe «meu malandreco». Portanto, quando escreve que "o chico-espertismo abala a pátria e eu estou a ser cúmplice. A bem do futuro da nação, vou começar por trocar os livros da Disney pela obra completa de José Gil" e por aí fora, o que está a dizer o João Miguel Tavares, ele que não é Filósofo?
Eu diria, se ousasse interpretar, que, tal como muitos outros cronistas da nossa praça, está só a mostrar o seu wiseguyism.
Um dia, quem sabe se não será útil?
E já agora, trocar os livros da Disney pelos de José Gil talvez não fosse assim tão má ideia.
Primeiro porque evitava que os mocinhos lá de casa lessem porcarias. E depois porque ficavam com qualquer coisa realmente valiosa nas estantes para lerem mais tarde. E o Pai João Miguel também podia ir aproveitando.

7 comentários:

Graza disse...

"O desnorte"?! Tenho que ver!... José Gil tem um particular e interessante conhecimento dos portugueses como povo. "O Portugal, Hoje" é um livro obrigatório, tão obrigatório que que adquiri também a edição revista.

Anónimo disse...

Lúcido e pertinente, como sempre, Tacci!

Estava quase a dizer que há pais que têm a cabeça apenas para pendurar os cabelos. Estava quase mas não cheguei a dizer para não ser desagradável e indelicado. Mas que os há, há!
Que raio de betinhos a bizarra ideia de educação sem constrangimento e sem proibição andou a produzir! Será que cabe aos professores ensinar aos meninos que cada um tem o seu lugar; que há limites para o exercício da individualidade, que a autonomia é irmã gémea da liberdade e que ambas exigem o dever de todos deverem ser livres e autónomos e que, portanto, cada um deve criar condições para que o outro o seja também; que há regras que é obrigatório respeitar para que vivamos uns com os outros; que quando as regras, aceites de livre vontade ou impostas pelo pai e/ou pelo professor , não são respeitadas isso é acompanhado de censura e/ou de punição porque não se pode negociar nem discutir se se atravessa a rua quando o autocarro ou o comboio estão a passar ou se se vai ao mar com bandeira vermelha, ou se cospe na sopa, ou se... ou se...? Será que os pais não se dão conta (porque a cabeça serve só para pendurar os cabelos?!) de que se estão a esvaziar de uma boa parte da sua função educadora paterna ao recusarem, consciente ou inconscientemente, o exercício da autoridade, condição fundamental para o crescimento equilibrado do seu rebento? Será que não se dão conta de que os filhotes esperam deles amor, carinho, disponibilidade, segurança, conforto, liberdade e, também com a mesma importância, a autoridade? A autoridade que tem que ser sensata e justa e que ele permanentemente avalia e testa mas que lhe é essencial para o seu crescimento gradual, progressivo e completo?

Há quem diga que esta recusa do exercício de autoridade (repito, consciente ou inconsciente) é a ressaca de muitos anos de educação muito autoritária e pouco livre. Pois está a chegar a altura de se assumir que o crescimento equilibrado dos filhotes se faz no equilíbrio entre a autoridade e a liberdade. E que isso é a essência da educação e que é também o mais difícil.

Ainda não li o "Desnorte" mas que anda por aí um desnorte acentuado e alimentado em equívocos e distracções, lá isso anda! E na educação então!...


jad

tacci disse...

Graza:
Não sabia que havia uma edição revista do "Portugal, hoje". O José Gil tem sobre nós todos uma imensa vantagem: é um estrangeirado que vive e trabalha junto de nós, como se nos tivesse ali, em cima da banca de trabalho para nos ver à lupa.
Às vezes dói.

tacci disse...

Jad:
O João Miguel Tavares não mereceria um post no P,C! se o seu artigo não fosse, justamente, um exemplo do chico-espertismo em que os artigos de opinião e as cronicazinas de jornal se estão a transformar.
O JMT, no seu artigo, mostra que não é parvo e que entendeu muitíssimo bem o livro do J. Gil.
A chico-espertice está num certo tom «quando oiço a palavra cultura, saco logo do meu revólver» que, de há uns anos para cá, afidalga bués.
Assumir um tom desdenhoso quando se fala, por exemplo, do Saramago, tem imenso estilo, mostra que se está «in», que se conhece os alvos convenientes.
Já foi moda atirar-se às canelas do José Afonso ou do Vasco Granja, já vi políticos dizerem que a Literatura e a Filosofia não são prioritárias, o que interessa é a Educação Cívica e a Soldadura.
E se quizeres reflectir sobre questões de educação (e de civilização, que é o mesmo, creio eu) dizem que estás a falar «eduquês» e que a Maria de Lurdes Rodrigues é que tem razão em dar nas orelhas aos professores.

Anónimo disse...

Pois é, Tacci, equívocos e "distracções" que nos estão a conduzir para o lado preverso da igualdade: apenas os mais atentos, cultos ou social e culturalmente mais despertos investirão na formação, na educação, na cultura. E isso torna-los-à mais aptos, mais competentes, mais diferenciados, socialmente mais valorizados. Enquanto uns se mantêm fieis à igualdade, outros apostam na diferença. E estes é que ganham!
Entretanto, alimenta-se o povo da dose diária do saber igualitário, comum, bem formatado para que todos se sintam iguais.
Não achas que há muita gente distraída, equivocada e outros que se fazem passar por isso fazendo dos outros parvos?! E não serão esses os que verdadeiramente devemos temer e denunciar (como aliás o teu post faz)? Pobres dos pais que protegem os filhos agredindo a exigência, o esforço e o trabalho!
jad

Anónimo disse...

Pois é, Tacci, equívocos e "distracções" que nos estão a conduzir para o lado preverso da igualdade: apenas os mais atentos, cultos ou social e culturalmente mais despertos investirão na formação, na educação, na cultura. E isso torna-los-à mais aptos, mais competentes, mais diferenciados, socialmente mais valorizados. Enquanto uns se mantêm fieis à igualdade, outros apostam na diferença. E estes é que ganham!
Entretanto, alimenta-se o povo da dose diária do saber igualitário, comum, bem formatado para que todos se sintam iguais.
Não achas que há muita gente distraída, equivocada e outros que se fazem passar por isso fazendo dos outros parvos?! E não serão esses os que verdadeiramente devemos temer e denunciar (como aliás o teu post faz)? Pobres dos pais que protegem os filhos agredindo a exigência, o esforço e o trabalho!
jad

Anónimo disse...

Parece que houve um exagerosinho!
jad