quinta-feira, dezembro 31, 2009

Obediênciazinha, pois então! (I)


Do que vos quero falar, ou, dado que o Portugal, caramba! se tem vindo a transformar em mais um blogue do eu, o que eu quereria perceber, é:

Porque havemos de obedecer a uma ordem?

Mas, claro, tenho de começar por algum sítio e, portanto, aquele estranho acontecimento passado lá para os lados de St. Margarida, ou de Tancos, serve perfeitamente.
Lembram-se?
Eram umas sete da manhã, vem um condutor na sua carrinha, tinha andado a distribuir jornais e, a meio da estrada, a ocupar-lhe a faixa, ia um pelotão de futuros paraquedistas vestidos daquela cor chamada verde-tropa, escolhida justamente para não dar nas vistas. Cumpriu a sua função. O condutor não os viu realmente - ou só demasiado tarde.
Acidente, dezasseis atropelados, três muito graves.
Não interessa se houve ou não culpados, se foram castigados, se alguém indemnizou as vítimas ou se está tudo perdido na burocracia de um ex-tribunal militar.
Claro, as notícias falaram de um carro desgovernado, um motorista adormecido ao volante ou cansado ou qualquer outra coisa que justificasse o desastre. Tudo menos o óbvio: a tropa está-se nas tintas para as leis quando não lhe apetece cumpri-las. No caso eram as do trânsito, poderiam ser outras.
Não que a tropa não cultive a obediência.
Tem Nepes, tem Erredêémes, tem as suas bíblias e faz gala em que tudo seja by the book.
Excepto se aos sargentos e oficiais outra coisa não ocorrer, mas isso é outra conversa. Relevante é que não tenha havido muito mais informações sobre as necessárias sequelas do acidente. A obediência e o silêncio andam frequentemente juntos. A cegueira segue-as de muito perto.

2.

A obediência na tropa é engraçada: parece ter sido feita de propósito para nos mostrar a que ponto pode chegar a alienação ou, para ser claro, até que ponto alguém pode prescindir da sua própria vontade, dos seus instintos até, se a palavra tiver algum conteúdo.
A que outro conceito poderíamos recorrer para explicar, por exemplo, as cargas de baioneta nos assaltos às trincheiras inimigas, quando um general francês ou alemão, que importa, sacrificava três mil homens para recuperar cem ou duzentos metros da terra de ninguém, uma aldeia arrasada e deserta, um pedaço de bosque onde, de novo seria preciso cavar trincheiras, instalar metralhadoras?
Lembram-se do Hans Castorp, o jovem doente (mas de quê?) que desceu do sanatório, na encosta da Montanha Mágica, a cinco mil pés de altitude? Vista de lá de cima, a pátria «assemelhava-se a um formigueiro em pânico». E o Hans mergulhou no vale e depois num batalhão académico:
"Eis o nosso amigo, eis Hans Castrop! Já de longe o reconhecemos (...) Arde, ensopado pela chuva como os outros. Corre, os pés trôpegos, agarrando a espingarda. Vejam, pisou a mão de um camarada caído, a sua bota ferrada afundou essa mão no solo lamacento, crivado de estilhaços. E todavia é ele!"
(Thomas Mann, A montanha mágica)

O que levará alguém a seguir o seu oficial, o seu pendão, o seu clarim até à morte? Ou, se preferirmos, o que terá levado os carcereiros de Auschwitz, os Eichmann deste mundo a obedecer às ordens que alegam terem-lhes sido dadas?

terça-feira, dezembro 22, 2009

Jingle bels, jingle bels, ta-ta-ri-tatá,,,


Um Auto de Natal
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A cena passa-se na estrada para Belém.
Três camelos carregados com os Reis Magos vão conversando.
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Zé Camelo (cansado) - Ainda temos de os carregar por muito tempo?
Camelo mais velho (pacientemente:) - Ná! Dizem que é só até ao dia seis ...
Zé Camelo (duvidoso) - Ah! ... E tu acreditas?
Camelo mais velho (pacientemente) - Claro! Todos os anos há um dia seis em Janeiro, não há?
Zé Camelo (com uma vaga esperança) - Mas é só no Natal, não é?
Camelo mais velho (pacientemente) - Bom, é também no Dia das bruxas, por exemplo. E no São Valentim, no Dia da Mãe, na Páscoa... Mas é sempre Natal. Nunca ouviste dizer que o Natal é sempre que os homens quiserem?
Zé Camelo (admirado)- E os homens são esses que vão lá em cima?
Camelo mais velho (pacientemente) - Conheces outros?
Zé Camelo (cabisbaixo) - Então e nós?
Camelo mais velho (pacientemente) - Nós? Nós somos os camelos.
Zé Camelo (meditativo) - Hum...
Terceiro Camelo - Oxalá nos dêem azevias. Das de grão. O Bolo Rei já não se aguenta...
(Cai o pano)
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O Portugal, Caramba!
deseja a todos os seus amigos
um Feliz Natal

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XXII)

Charles Foucault
1858-1916
-- Então? Gostaste!
Aka parou.
- Pardon?
- Esse livro. Gostaste?
Era um homenzinho moreno, mal vestido, com um sorriso de miúdo.
- Conheço-te? - perguntou ela.
Fez um gesto para sossegar o guarda-costas.
- Se calhar não. Mas eu vi-te anteontem. Vinhas do Jeu de Boules, ias sendo atropelada por causa desse livrinho.
Aka sorriu.
- Sim, o Mahamoud segurou-me a tempo.
- Não sei quem é esse Mahamoud, a menos que seja aquele tractor de desaterro que está aí atrás de ti. Mas quem te segurou fui eu.
- Tens a certeza?
- Não tenho muitas no mundo, confesso-te. Percebes, sou um nadinha como o São Tomé, mais assim para o céptico. Mas essa certeza julgo que sim.
Aka hesitou.
- Então devo-te um agradecimento - decidiu. - Mesmo se é muito inconveniente que uma mulher da minha tribo deva a vida a um homem de outra. Que te posso oferecer como recompensa?
- Não tem importância, esquece.
- Posso parecer-te arrogante, mas deixa que seja eu a avaliar a importância ou não da minha vida. Que te posso oferecer? Pede o que quiseres.
- Arrogância por arrogância: agradeço-te, mas não quero nada. Ou sim: oferece-me uma resposta. O que é que uma miúda muçulmana estará a ler com tanto interesse que ia morrendo por causa disso? Ia para te perguntar anteontem, mas esse quase guarda-fato que está aí olhou-me de tal maneira que nem tive coragem.
Aka não estava habituada a gente faladora.
Abanou a cabeça confusa.
- Quase o quê?
- Quase guarda-fato. São os dois do mesmo tamanho; a diferença é que num guarda-fato, a roupa pendura-se do lado de dentro, não tinhas reparado? Mas o que é que uma miúda...
- Não se deve emendar um mais velho, desculpa, mas não sou muçulmana.
- Eu também não, deixa lá. Mas o que é que uma miúda que não é muçulmana anda a ler há dois dias pelas ruas desta cosmopolita urbe?
Aka estendeu o livro.
- Ofereço-te.
- Poemas. Não conheço este Jerôme Margot. Que tem de especial?
- Teres-me salvo deu-te o direito de me interrogares... que de outro modo não terias.
Ficou a olhá-la um longo momento, com o livro na mão.
- Ofendes-te com facilidade - disse ele cautelosamente, a sombra do sorriso ingénuo a voltar-lhe aos olhos. - Ou, a lo mejor, sou eu quem não está a ser correcto.
Fez outra pausa.
- Mas não te estava a interrogar. Ou talvez sim, mas só como um aprendiz interroga um mestre que a sorte lhe pôs no caminho. E sei o que vais dizer, mas a vida já me ensinou que os mestres não têm idade, acreditas?
Aka baixou os olhos.
- O que eu ando à procura é de uma centelha de grandeza. Julguei entrevê-la aí, nesse livro, mas o autor está morto. Não haverá ninguém vivo que uma rapariga da minha idade possa admirar e respeitar?
- Deus. Deus está vivo.
- Eu sei. Mas é tão raro!
- Muito, muito raro. Mas temos de aceitar a condição humana, não temos?
Fez um sorriso mais largo e, com um «até um dia, obrigado pelo livro» juntou-se à multidão que não deixara de os acotovelar.
Aka continuou parada a ver-lhe as costas curvadas e o passo vivo.
- Não, não temos - murmurou ela, a pensar ainda na condição humana. - Se uma coisa nos sufoca, não temos de a aceitar. Eu, pelo menos, não tenho de aceitar nada.

sábado, dezembro 05, 2009

Se um avaliador incomoda muita gente...


Prof: Pá, havia de se fazer um congresso p'ra fazer um mais parvo do qu'a tu e n'haviam de conseguir!
Aluno: Ho-ho-ho! Pois não, professor!

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Declaração
-
Pronto!
Declaro que gosto de pensar que fui um bom professor.
Não sei a quem hei-de pedir desculpas pela imodéstia. Aos alunos, claro, pareceria da mais elementar justiça, mas aos pais, nunca!
Mas não.
Aos alunos dei sempre o que tinha, o que roubava, o que inventava.
O que lia e o que escrevia, o que improvisava no meio da aula, com bonequinhos desenhados a giz no quadro preto.
(A propósito: sabem a história de Quonsumor, o Gordo? Estou a ver que não. Um dia hei-de procurá-la e mando-vos.)
Dei-lhes a oportunidade de pensar, de discordar, de discutir, de ser do contra ou do a favor, de me aceitarem ou me odiarem.
Pertencer, nas minhas turmas, passou pelo participar ou amuar num canto: a escolha era de cada um, em cada dia.
Muitos não aprenderam nada do que eu ensinei e atingiram o nível de excelência, como agora se diz, porque souberam pensar pela sua cabeça.
Mais do que aulas, quis que fossem foruns de liberdade.
Só houve sempre uma exigência absoluta: assumirem-se como gente, tratarem-se como gente uns aos outros.
Não sou romântico e sei que nem sempre consegui o que conseguia muitas vezes, que houve aulas preparadas ao milímetro que falharam completamente, estratégias mal pensadas que deram para o torto, turmas que não soube agarrar, que perdi alguns alunos e que, imagino, terei feito mal a outros.
Assumo que não sou modelo para ninguém.
E, para que conste, esclareço desde já:
Do que senti sempre mais a falta, foi da cooperação entre nós, professores das mesmas turmas e que rarissimamente conseguimos formar equipe.
O que mais odiei foram os exames, pré-formatados, cada vez mais preconceituosos, como se alguém soubesse de antemão como cada aluno vai responder, quais os seus erros, quais as interpretações que fazem sentido.
E percebo que nunca atingiria o nível de suficiente numa avaliação de desempenho como deve ser.
E gosto de pensar que me estaria nas tintas.
Mas atenção, não quero fingir que sou um herói: não garanto que a ameaça de os meus poderem vir a passar fome não tivesse o seu peso; talvez não conseguisse ser professor, talvez tivesse de me contentar em ser funcionário do Ministério da Educação.
Incomoda-me pensar nisso.
-
Bento Sequeira
(transcrito e adaptado por Tacci)

sexta-feira, dezembro 04, 2009