Soubeste, claro, que estive em Ceuta, no ano passado. Um capricho? Não sei. O cheiro a sal, claro, e os mastros rangendo, o bater das velas... Sim, tudo isso. E também porque queria espaço, o largo.
Tu que viajaste, recordas-te dos teus primeiros dias no mar?
O que ainda sinto de cada vez que me vem à memória é espantosa beleza de toda a costa, as praias de areia... rosa? De que cor são as praias, tu que te dizes poeta? Da cor do pão branco, um pouco tostado pelo forno, concordas?
E os cheiros, aquele cheiro da madeira molhada, salgado e azedo a um tempo.
Dizem que embarquei secretamente. Não vale nem um encolher de ombros. Como se eu conseguisse dar dois passos sem um jesuíta na minha esteira. Hei-de falar-te dos jesuítas um dia, quando calhar.
Não: fui lá para ver com os meus próprios olhos. Um governador, seja da mais pequena das praças fortes, até ao Vice-Rei das Índias nunca consegue saber coisa nenhuma... Não, espera. Quando se pergunta qualquer coisa, há sempre duas respostas. Se não há, é porque perguntaste às pessoas erradas. Vê só um exemplo: porque é que as gentes do meu reino passam fome?
Pronto, bem sei, eu se passar é porque quero. Mas tu passas quer queiras quer não. Basta não chover este ano, o sol queimar ou o frio fazer cair a geada ou não sei o quê - o Rei não tem de perceber estas coisas mesquinhas, não é? - e pronto. Passas fome.
Há dias, em Sintra, na livraria do palácio entretive-me a estudar uns documentos do tempo do meu bisavô Manuel. Sabes que houve uma grande fome em Portugal, justamente quando ele se passeava com girafas e leopardos por Lisboa, numa carruagem folheada a oiro?
Quando da Mina e da Flandres vinham rios de oiro, o Tejo formigava de naus que traziam especiarias das Índias, o açúcar crescia na Madeira, nas cidades não havia pão.
E os mercadores reclamavam de El-Rei que os autorizasse a importar trigo e centeio, baratos, claro, para os vender caros cá dentro. E os concelhos reclamavam que o pouco que por cá crescia apodrecia nos celeiros porque ninguém lá o ia comprar...
Quem tinha razão, Luís Vaz? E para onde iam os rios de dinheiro que, diz-se nessas cartas, corriam para os nossos cofres?
Percebes porque tive de ir ao reino do Muley-Moluk ver com os meus próprios olhos porque abandonámos tantas praças e porque é que não podemos sustentar as que ainda temos?