terça-feira, fevereiro 20, 2007

Os defeitos do infiel

Caminhamos dous dias com a maior pressa que nos foi possiuel, posto que com trabalho, por razão das neues que neste logar começauâo a se passar com difficuldade; se não quando a outro dia pella menhâa chegaram a nós outros tres serranos, mandados pelo Gouernador da terra com grandes ameaças e medo aos que nos guiauão, se fossem mais por diante; dizendolhe que sua molher e filhos ficauão em estreita prizão, e seu fato confiscado; e se não voltasse, auião de morrer todos; e a mim com varias ameaças e medos, procurarão amedrontar, dizendo que meu companheiro, que estaua na aldeia, passaria muito mal, se eu logo não voltasse; e o fatinho que tinhamos, seria tomado por perdido, e sobre tudo que auia de morrer infalivelmente, se hia por diante, por não ser ainda tempo de passar aquelle deserto, com outras muitas cousas e espantos desta calidade. O serrano que nos guoiaua, voltou logo; e eu como tinha todas as informaçoens do caminho, me fui por diante com dous moços, por não se atreuerem tres que tinhão vindo a mais, que a nos mouerem com palauras. Inuocado o nome de Jesu e ajuda do Senhor, continuamos por diante; porém o trabalho que passamos foi muito excessiuo, porque nos acontecia muitas vezes ficar encrauados dentro na neue, hora até os hombros, hora até os peitos, de ordinario até o joelho, cançando a sair asima, mais do que se pode crer, e suando suores frios, vendonos não poucads vezes em risco de vida; muitas vezes nos era necessario ir por cima da neue com o corpo, como quem vai nadando...
Nos pes, mãos e rosto, não tinhamos sentimento, porque com o demasiado rigor do frio, ficauamos totalmente sem sentido; aconteceome pegando em não sei que, cahirme hum bom pedaço de dedo, sem eu dar fee disso, nem sentir a ferida, se não fora o muito sangue que della corria. Os pees foram apodrecendo de maneira, que de muy inchados, nolos queimauão depois com brazas viuas, e ferros abrazados, e com muy pouco sentimento nosso...
P. António Andrade, O descobrimento do Tibet

5 comentários:

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Texto precioso, Tacci. Pela língua é do século dezoito, certo? Não conheço o Autor mas terá sido um daqueles primeiros missionários que, partindo da Índia ou das cidades da costa ocidental do sub-continente a que os portugueses chamaram Índia, chegaram a Lhasa, no tecto do mundo?
Aventuras impressionantes que aqui estão bem descritas. Episódios de uma história de contacto cultural que à semelhança de tantas outras -a Evangelização que os ingleses promoveram nas Ilhas do Pacífico pura e simplesmente destruiu formas de culturas com um par de milhares de anos- partir da completa incapacidade de ambas as partes se entenderem entre si e isto no sentido de serem capazes de compreenderem o(s) outro(s) que tinham pela frente. Desconheço textos que nos retratem o ponto de vista dos visitados a respeito dos visitantes, mas do que conheço do que nos chegou da parte dos missionários de origem portuguesa, não foi clara a compreensão que tinham pela frente uma cultura, uma expressão civilizacional que datava dos tempos do Império Romano no Mediterrânio.
Hoje em dia o Tibete vive uma colonização de que se não fala; a ocupação do território por parte das autoridades centrais da República Popular da China e a chegada e instalação de populações de outras origens e de partes diversas daquele vastíssimo país. De somenos será a corte no exílio indiano em que se recriou o palácio de Lhasa, por parte do Dalai Lama e todos aqueles e seus descendentes que decidiram fugir com ele e ali se instalarem. O mais grave é pura e simplesmente a destruição das bases tradicionais de sustentação da economia de auto-subsistência e pequena troca que ali era milenar e a perseguição e silenciamento das práticas budistas que não só conferiam prinípios para a vida quotidiana, como ainda moldavam e cadenciavam os ritmos de vida daquelas gentes. O problema não estará em si no fim de um tempo pretérito que as inércias provocadas pela geografia fez chegar até tão tarde. A difusão e o contacto entre populações, mais tarde ou mais cedo se encarregariam de o provocar. O problema é que esse fim tem causas mecânicas exteriores e a sociedade substituinte resultará outra em função da dinâmica do ocupante e não da autóctone que está desaparecendo perante aquela. Ora isto é que é uma tragédia que o mundo não sabe como evitar nestes tempos em que a Humanidade teima em não querer deixar de ser infantil, como um dia o velho Albert disse que ela era.
Espero não me ter alongado nem o ter maçado, Tacci.
Dou-lhe as boas noites e deixo-lhe o agradecimento pela sua visita "No Larga da Graça".
Paz e saúde para si, Tacci e para todos os que lhe são queridos.
Luís F. de A. Gomes

tacci disse...

Meu caro Luís, claro que não se alongou e que os seus comentários são sempre bem-vindos.
A edição que estou a usar é o fac-simile (Lisboa, Alcalá, 2005) da edição de 1921 (Coimbra, Imprensa da Universidade) que traz a reprodução também, com indicação das paginas originais - veja como é complicado - da edição de Matheus Pinheiro, de 1626.
Ando por aqui um bocadinho perdido porque não faço ideia do que seja, para dar só um exemplo, o "Livro das Monções".
O que mais me impressionou no P. Andrade foi a constante desconfiança de que ia ser traído pelos gentios - todos os não cristãos, claro. E mesmo quando recebe socorro dos ditos gentios, nunca os atribui à bondade ou ao sentimento de responsabilidade que o hospedeiro sente em relação ao hóspede (sobretudo quando ele se porta como se tivesse enlouquecido). Supõe sempre que é o medo de serem castigados por um outro qualquer rei acima deles. E não parece dar-se conta de que, quando recebe um favor, o atribui à vontade de Deus. Quando tem menos sorte, atribui-a à malvadez de quem é gentio, portanto demoníaco ou coisa que o valha.
Faz-me lembrar um familiar próximo que tem sempre razão. Se há alguma coisa de bom neste Portugal, foi o Salazar que deixou. Se há alguma coisa de mal, é óbvio que foram os comunas.
Mas, do outro lado também tenho ouvido interessantes: tudo o que é bom, são conquistas dos trabalhadores. O que não presta é a reacção do Grande Capital.
Julgo que se trata da negação do outro, o que, não sendo exclusivo nosso, está suficientemente instalado...
Um abraço, Luís.
E desculpe, também me alonguei.

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Pois, século dezassete e não dezoito. Depois de ter remetido o comentário bem me queria parecer que estava errado e, de facto, verifiquei que os primeiros contactos datam dessa e não da centúria que inicalmente referi e a verdade é que a linguagem nem mesmo é do século dezassete tardio, antes data da primeira metade. Obrigada pelas referências Tacci e pelas correcções que estas permitiram.

Os cristãos usam o termo gentio? É essa a palavra que está no texto? Provavelmente por ser português antigo, não? Mas, embora não seja cristão e apesar de a minha cultura cristã ser limitada e a ela ter acedido apenas pela aliança de um casamento misto, nunca tinha escutado essa palavra entre eles.

"O que mais me impressionou no P. Andrade foi a constante desconfiança de que ia ser traído pelos gentios - todos os não cristãos, claro."
Não estranhe meu caro, trata-se de um dos mistérios da nossa natureza que até nem é tão misterioso como isso e é fácil de compreender.
Estamos perante a propensaão natural que todos temos para o etnocentrismo.
Não há povo que não tenha esses preconceitos e a verdade é que nem mesmo dependem da nossa consciência e vontade; quantas vezes já ouviu falar em ciganice, por exemplo? É uma prova doi grau inconsciente desse preconceitos.
Tenho estudado o racismo desde noventa e três e se a história deste é fácil de fazer e os seus motivos fáceis de identificar e compreender, identifiquei desde logo o etnocentrismo como um dos factores propiciadores da boa recepção para a ideologia do racismo. Depois de investigar esse domínio, concluí que a nossa própria natureza biológica e genética, aliada à nossa experimentação cultural com os perigos da Natureza e ao isolamento que ancestralmente a geografia provocou entre as comunidades humanas, criaram condições para dos preconceitos etnocêntricos -em poucas palavras, a crença que a nossa sociedade, os nossos padrões de vida são melhores que os dos outros- se chegar às conclusões perniciosas que o racismo veio colocar sobre a mesa.

Essa do seu familiar é infelizmente mais vulgar do que seria de esperar e desejável neste triste país à beira-mar saqueado.
Não por acaso, o reverso da medalha aparece na forma que retrata, a idolatria dos amanhãs que cantam que tanta infelicidade acabaram por trazer aos mais pobres e aos mais simples que pela retórica seriam os mais bafejados por aquela sorte ou triste sorte para benefício de muito poucos.

Bem Tacci, voltei a alongar-me e espero não o ter aborrecido por isso.

Um trimestre passou desde a conversa. Você disse que precisava de cinco seis meses para ver.
Está de pé a proposta para expormos os seus trabalhos. Recoda o convite que lhe apresentei? Podemos sempre recuperá-lo nas suas caixinhas de comentários. Seja como for, a verdade é que o interesse se mantem e a proposta também. Vamos a isso ou ainda é cedo? A verdade é que neste momento os amigos da CACAV, por sugestão minha, já estão organizando a exibição de trabalhos do Joaquim Nobre que também foi encontrado nestes espaços virtuais. Só lhe psso acrescentar que eles teriam todo o gosto em promover a sua Arte e partilhá-la com todos.O que me diz a isto Tacci? Pessoalmente penso que sertia um desperdício não trazermos isso à luz do dia mas in locco e não por intermédio do filtro do écran de um computador.

Saúde Tacci, para si e todos os que lhe são queridos.

Luís F. de A. Gomes

tacci disse...

Meu caro Luís:
Só agora lhe estou a responder pela única razão de que precisei de pensar. Como já reparou, eu não sou, nem de longe, um aguarelista. Sou um contador de histórias: as imagens que eu pinto permitem adivinhar ou, de preferência, inventar enredos. Já lhe aconteceu, de certeza, ver um livro numa língua desconhecida, mas com gravuras. Para mim é como que um desafio, descobrir que história é narrada, mesmo sabendo que só é possível inventá-la. Julgo que é isso o que eu tento fazer.
Se, em vez de uma exposição, me arranjasse um cantinho discreto ao lado de gente que pintasse melhor, eu podia tentar fazer meia dúzia dessas ilustrações.
Que acha?
Um abraço e obrigado por tudo.

Anónimo disse...

Obrigado por Blog intiresny