Ontem ia corredor fora, a caminho da secretaria e ia às apalpadelas, porque já passava das onze e aqui as luzes apagam-se às nove da noite. E nem imaginam as minhas Gentis Leitoras o que me aconteceu.
Os corredores são compridos e não se vê nada, que as janelas estão muito no alto - por causa dos suicidas, acho eu, mesmo se este pavilhão só tem primeiro andar - e há apenas uma claridade muito vaga no tecto. De modo que eu ia a olhar para cima, com a mão na parede da direita, porque à esquerda estão uns armários de ferro que parecem tambores quando a gente tropeça neles. O problema é que, do lado direito há uma espécie de cadeiras de pau, muito compridas, onde a gente se pode sentar quando tem visitas.
Foi quando me afastava de um desses bancos que perdi o norte e devo ter pisado um bicho qualquer que ia a passar. Devia ser ratazana porque gatos, aqui, não os há (as cozinheiras não deixam escapar nenhum e ratazanas ninguém as apanha a todas). O que sei é que resvalei, fui de ventas à torneira, como se costuma dizer, e bumba num armário, tóóóiiing!
As Gentis Leitoras e a minha Senhorinha imaginam o estrondo a ecoar nestes corredores conventuais.
Claro que tratei de me levantar a correr.
E foi quando me apoiei na cadeira para ajudar, que a mão direita poisou num objecto grande e cilíndrico, que, para meu espanto, se acendeu e iluminou o corredor todo por ali fora.
A Gentil Senhorinha e as Damas que têm acompanhado as aventuras do Carlinhos no Canil Municipal, já adivinharam que se tratava de uma sólida lanterna, pesada das pilhas e cuja luz eu tive de apagar o mais depressa que consegui descobrir o botão, porque os neons do tecto se acenderam e ouvi o som do elevador. Era o segurança do pavilhão e o enfermeiro de turno, pela certa, de modo que eu, para escapar, não tinha tempo.
Que hei-de eu fazer, que não hei-de eu fazer, agarro-me à mão direita com a esquerda e desato a gritar «Mordeu-me, mordeu-me…»
A vantagem de estar num hospital destes – estou em Rilhafoles, como já devo ter mencionado alguma vez – é que a gente pode dizer o quiser e toda a gente acredita.
Por isso, quando o enfermeiro me viu a estender a mão e a gritar que me tinham mordido, nem pensou que eu estava a segurar a lanterna debaixo do braço e tentou acalmar-me com boas palavras e levar-me para a enfermaria antes de eu ter tempo de amotinar o Pavilhão.
E eu, claro, não queria que ele me desse a injecção dos furiosos, por isso fingi que me acalmava e deixei-me levar enquanto ia mostrando as marcas de dentes dos Pitbuxos e lamuriava uma história de cães, Diabretes e do seu Primo Carlinhos.
Mas como hoje, graças à lanterna milagrosa, consegui chegar à secretaria e contar-lhes, Gentis Leitoras, o que me aconteceu, já não vou ter tempo para falar do Gigante que levava o Deus-dos-Cães debaixo do braço (o qual Gigante, posso adiantar, era o próprio Guarda).
Nem do que fizeram a Magrizela e o Carlinhos para salvar a Emplumada!
Mas, graças à lanterna, amanhã não hei-de faltar e, se as Gentis Senhoras e Senhorinhas e os Nobres Cavaleiros tiverem a bondade de aqui voltar, então sim, sensacionais revelações vos esperam.
Ou talvez não.