Devido ao estado da minha saúde, diz a enfermeira velha
(rabugenta e cabelos raquíticos, mais rabo-de-corvo a depenar-se do que asa viçosa, a descolar-se do crânio cor-de-rosa e com farto bigode)
só posso, Gentil Senhorinha, escrever umas linhas sobre o que se passa com o seu Primo Carlinhos que, como sabe, anda à procura de um cão que jogue xadrez e não se importe de ser aspirado para não largar pelos na alcatifa da Mãe
(a sua Tia, como sabe se eu já tiver dito, o que não garanto, às vezes dão-me estes esquecimentos, mas não são, como diz o Doutor, falhas de memória, a prova é que ainda sei o que quero contar sobre o pavoroso acidente na auto-estrada de Mértola a Berjenjas.)
E então era assim:
De Mértola ao Fundão vai um passo de anão.
Do Fundão a Alpedrinha, um voo de andorinha.
(Ponháqui a s'a mãozinha, ponh'aqui o sê pézão.)
Diz-me, Senhorinha, com a sua proverbial delicadeza que o Pica-Pão-Manel-João não é seu Primo, quem é, esse sim, é o Carlinhos que foi dado à Magrizela pelo Diabrete.
Se a Senhorinha o afirma - ainda que com a sua proverbial suavidade - então é certo, ainda que eu pense que é estranho que um rapazinho de tão boas famílias, seja assim dado a uma cadela rafeira e, vai-se a ver, até bastante entrada em anos. Diz-me, apesar disso, Senhorinha, que a Magrizela cumprimentou o Carlinhos à maneira dos cães, isto é, saltando para tentar lamber-lhe a cara (com o que terão os óculos ficado de esguelha outra vez) e deitando-se para receber festas na barriga.
O Diabrete, esse, insiste suave a Gentil Senhorinha a tentar que eu me lembre do que, aparentemente, eu próprio lhe contei, e que foi, então o tal Diabrete ter-se zangado!
- Olha lá! Tu não estás nhã-ã-ã? - terá ele dito. - Eu dei-te o puto e tu ficas aí, em cortesias, como se isto fosse a night ali nas docas?
A Magrizela, primeiro, olha, parece que rosnou ao tal Diabrete, mas logo a seguir terá abanado a cauda conciliatória.
- Vá lá, não te escames, que ninguém te paga para isso. O que é que vai acontecer?
- Se eu fosse bruxo em vez de Diabrete, montava uma loja de vender bilhetes da lotaria, e essas coisa, raspadinhas e assim, e depois vendia as que não tinham nada e as premiadas, tá-se a ver, não é, eram aqui para a Santa Casa.
Suponho, pelo que me contou, que a Magrizela rosnou outra vez.
- Pronto, pronto. Mesmo sem ser bruxo, sou capaz de adivinhar que o Guarda há-de vir aí, não tarda. E, nessa altura, tás a ver, eu cá fujo!
- Mas porquê? - pergutou o Carlinhos. - A garina lá de fóra é que me deixou entrar para ver se havia um cão que jogasse xadrez e que...
- Olha, puto! Isso foi antes de tu teres arranjado este chavascal todo, tás a ouvir? Agora é pirar e acabou-se.
E, Gentil Senhorinha, mesmo que me tenha contado mais alguma coisa, agora a enfermeira já veio dar-me aqueles comprimidos azuis e já não me lembro de nada.
Mas como, dizem eles, agora tenho de desligar esta coisa por causa de não sei quê, o resto do que eu me lembrar fica para a vez seguinte que eu consiga escapulir-me até aqui.
Resta-me, Senhorinha, apresentar-lhe os meus respeitos e, como já me querem levar à força, digo-lhe adeus, até à
5 comentários:
:)CARACOLMENTE À ESPERA....
Já cá vim umas 3 vezes ler a história Tacci. O tempo disponível reduziu drasticamente e ando esgotada. receio não dizar nada de inteligente e prefiro estar calada :) . Gosto da criatividade da sua escrita que me põe um sorriso nos lábios. Aprecio sem qq sombra de dúvidas as suas pinturas. Deixo um beijinho e o meu apreço. Terei todo o gosto em ver a sequência da história .
Um beijinho
Ana: já pensaste em dar Red Bull aos caracóis?
Depois podias cantar:
"Caracolinho, voa voa, que o teu Pai foi p'ra Lisboa!"
Um abraço, Anita.
Olá Davide.
Já votei, mas devo dizer-te que não foi por causa do anti-salazarismo do Zé Afonso. Aqui para nós, tudo isso está morto e enterrado. Só algum sebastianista de vistas curtas é que ainda acredita que esses tempos salazarosos voltam, se calhar numa manhã de nevoeiro que é para encalhar melhor no Bugio.
Voto no Zé Afonso porque era «Gente» e porque era um grande músico.
Um abraço, Davide.
Volta sempre.
Gi, tenho andado bastante fora da Graça de Deus e, por isso só agora lhe estou a agradecer o seu comentário que me deixou muito feliz. Não precisa de dizer nada de propositadamente inteligente. Os seus comentários, mesmos os mais simples, são naturalmente inteligentes e, para além disso, muito simpáticos.
Um beijinho, Gi. Apareça sempre, mesmo se não lhe apetecer escrever.
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