sexta-feira, abril 13, 2007

O cão que jogava xadrez V


Sabei, Nobres Senhores, Gentis Damas e Cavaleiros, que as Aventuras verdadeiras do Carlinhos (de sua Mãe) em busca do Cão que joga xadrez e não se importa de ser aspirado para que o pelo não conspurque a higiénica morada onde ressona o Pai, não está prestes a terminar.
Lembrais-vos, certamente de que o Deus dos Cães, na sua inverosímil divindade, corria pela viga de ferro, à altura de um segundo andar de qualquer prédio antigo.
E porque correm as divindades, perguntais-me, a mim, contador destas e muitas outras histórias, como se esperásseis resposta.
- Então não têm os Deuses diante de si a eternidade? - argumentais. - Para quê, então, correr?
Que vos posso eu, que não sou teólogo, dizer?
Que, talvez sim, que talvez um segundo de corrida ou um milénio, seja a mesma coisa?
Mas imaginastes, porventura que o Carlinhos, lá atrás, arrastando-se pela estreita pista de ferro, já com a perna da calça rasgada e, agora com o fundilhos negros do pó que décadas tinham depositado naqueles inacessíveis espaços, podia esperar tanto tempo?
A verdade, porém, Gentil Senhorinha que com o olhar perplexo tem vindo a seguir o desenrolar destes eventos, a verdade verdadeira, é que o Deus dos Cães, esse mesmo que corria ali adiante sem olhar para trás, estava com fome. Uma fome canina. E assim se esqueceu de que o pobre Carlinhos também vinha, arrastando-se sobre o não-senhor, e em dois saltos bem ousados, desapareceu pela abertura do telhado, mais parecendo de facto o rei dos Gatos do que o Deus dos Cães.
- Hei! – gritou o Carlinhos – Então e o meu cão que sabe jogar xadrez e que não se importa…
Mas já não havia ninguém, o que, acrescento, não passa de um modo de dizer.
Lá por baixo, os Diabretes corriam alegremente atrás dos Pitbuxos, cavalgando às costas uns dos outros e gritando sonoros "iiiiupiiiis" de cada vez que atiravam o laço, como se fossem gaúchos à solta nas pampas do Rio Grande do Sul.
Mesmo na vertical do lugar onde o Carlinhos, agarrado á viga do tecto, podia espreitar, um laço apanhou um dos perseguidos que rolou pelo corredor, ganindo o seu desespero.
Das jaulas erguia-se um rosnar surdo que se transformava em ladridos, à medida que os Diabretes arrastavam o seu prisioneiro para fora do armazém.
Muito tempo decorreu em correrias cá por baixo e o Carlinhos lá em cima, pobre dele, começava a sentir uma certa vontade de ir à casa de banho...
As jaulas, porém, lá em baixo, iam-se aquietando, os Pitbuxos já não estavam à vista, um grupo de Diabretes em passo de marcha fúnebre passou solene revista aos corredores entoando uma versão bonita do hino da Maria da Fonte:
«Vivá Maria Cachucha», começava o alto,
«Com a su' voz de trovão!»
E logo o coro:
«P'rassustar os Pitbuxos
Que são tredos à raça de Cão!»
E também eles foram seguindo, as vozes já desafinadas, misturadas de risos, desvaneciam-se ao longe.
Apenas um Diabrete, a um canto, parecia entretido a tirar umas coisinhas pretas de entre os dedos dos pés, cheirava-as cuidadosamente e limpava o dedo aos calções antigamente, pelo menos, se calhasse, verdes.
- Posso descer? – perguntou-lhe lá de cima o Carlinhos.
- Não sei. Podes?
- Quer dizer, se não há aí nenhum desses cães…
- De quais? Destes? – apontou com o dedo sujo para as jaulas. – Há milhares. Ou milhões? Quantos são um milhão? São mais que dez?
Parecia perplexo e coçou a cabeça com a unha suja.
- São. – disse o Carlinhos. – Mas dos outros, dos cães do Guarda, aqueles com capacete e tudo.
- Desses, - disse o Diabrete. – Aqui em baixo não. Mas, talvez te interesse saber que está um mesmo atrás de ti.
O Carlinhos deu um salto, tentou olhar para trás e equilibrar-se ao mesmo tempo, um dos ténis prendeu-se num parafuso. Conseguiu agarrar-se in extremis, braços e pernas à volta da trave, os óculos pendurados só duma orelha.
O que vai acontecer agora ao vosso Primo, Gentil Senhorinha, Nobres Damas e Garbosos Cavaleiros, não o sabereis senão no próximo episódio se o Senhor Quiser e eu me lembrar de alguma coisa que concerte este desconcerto que para aqui vai.

4 comentários:

Anónimo disse...

Pronto, 'tá bem, fico à espera...

Afinal "quantos são um milhão? Mais que dez"? :))))

Katé

Bolacha

tacci disse...

Que remédio, S'Dona Bolacha! Até eu, que supostamente sou o autor tenho de esperar!
Mas se o Diabrete jogasse no Euromilhões, se calhar já sabia.
Um abraço.

Gi disse...

"- Então não têm os Deuses diante de si a eternidade? - argumentais. - Para quê, então, correr?"

Não foi o homem feito à imagem de um ?!Se o homem corre...só me pergunto, porque não é eterno também ...

Bom Domingo Tacci, aguardo as cenas dos próximos capítulos.

E já agora, a pintura, comos empre, uma graça

tacci disse...

Gi, não posso responder à sua pergunta, mas sempre lhe vou dizendo que se não houver vida eterna depois da morte, vou ficar muito zangado.
Um beijinho, Gi.
Uma boa semana para si.