Mas a ideia de que «tudo aquilo» pudesse ser «treta para tótós», como o Pai Natal e o Menino Jesús a dar prendas aos betinhos, ficou a trabalhar-lhe lá dentro. Ná! O Zé Nesgas havia de ter alguma razão, senão era ele, Carlinhos, quem havia de ter ganho uma bicicleta pelos anos e não o mongas do Hugo Vinhas que só tinha negativas.
Uma coisa, porém, e as minhas Gentis Leitoras certamente já pensaram nisso, é duvidar um tanto dos deuses, admitir que este mundo pode ser assim, como que um simples jogo de forças cegas, indiferentes à justiça e ao bem.
Outra, cem vezes mais difícil, é ter umas réstias de crença, dar de caras com um deus ao vivo e perceber que ele aceita o mal com o mesmo destempero da Stora de Inglês que não tem mão na malta e, zás, marca faltas de castigo a torto e a direito. Isso é que é lixado.
Claro que a minha Senhorinha, as gentis Damas e os garbosos Cavaleiros que me lêem agastados com tanta heresia, se estão neste momento a interrogar: «Que terá toda esta conversa a ver com o que aconteceu ao Carlinhos e à Magrizela?» Mesmo compreendendo a vossa impaciência e sem querer eu, pobre demente, causar mais escândalo do que aquele que para aqui me trouxe e já não foi pouco, é necessário que vos explique o estado de espírito de um tímido jovem que ia só à procura de um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado para não largar pelos nas alcatifas. E que obteve ele? Uma cadela velha que não jogava coisa nenhuma?
E seria assim mesmo, sempre, que as coisas se passavam lá no Canil?
Enquanto seguia, cabisbaixo, pelas ruas afora, a Magrizela resignada à corda atrás dele, começava a pensar que nada daquilo tinha sido verdade.
- Sonhei - concluiu ele. - Ou então foi uma daquelas pedradas que a Stor Padre falou, que dão estas merdas: a gente fica marado e julga coisas. Aquele deus, Anubis ou lá o que era, não pode existir, foi o que disse a Sónia na catequese. Há um só Deus que governa no Céu e na Terra e que não me deu a bicicleta porque... pronto, não sei porquê, mas o Vinhas havia de merecer mais do que eu...
Ia assim concentrado, entretido no seu processo de denegação, e nem ouviu a Magrizela, lá atrás, a dizer «olha que giro! Sou capaz de andar como tu!» Foi só ao virar da esquina, já perto de casa, que se deparou com os matulões, da Alfredo Arroja de certeza, a barrar o caminho. Pareciam mais embaraçados do que agressivos.
- Que é que tu trazes aí, ó puto? - quase gaguejava um deles.
O Carlinhos tirou vantagem da situação e respondeu, no tom mais agreste que conseguiu:
- É um cão, não se vê?
Mas, ao dizer isto e enquanto um dos parvalhões da Alfredo Arroja se rebolava em gargalhadas alarves, «um cão, fosga-se, ouviste, o puto diz que é um cão», virou-se para apontar a Magrizela e o queixo caiu-lhe até ao peito.
Na ponta do cordão, com a coleira ao pescoço, estava uma chavalita, nuínha como tinha vindo ao mundo, bonitinha e sorridente.
- Tás a ver como eu consigo andar nas patas de trás como tu? - dizia ela.
O que aconteceu a seguir, se me escapar amanhã à noite, vou tentar contá-lo, por muito incrível que pareça. Basta dizer que o Deus-dos-Cães voltou a aparecer, empoleirado em cima de uma velha camioneta à beira do passeio, para as minhas gentis Leitoras terem uma ideia do estranho que tudo aquilo foi, para mais em pleno coração do populoso bairro.
4 comentários:
O Carlinhos é o sortudo. As meninas magrizelas costumam ser muito dedicadas, às vezes demais. Mas isto é uma história, e ao invés da realidade pode ser que o Carlinhos não se farte dela, mesmo se ela nunca aprender a jogar xadrez
eu
"cem vezes mais difícil, é ter umas réstias de crença, dar de caras com um deus ao vivo e perceber que ele aceita o mal com o mesmo destempero da Stora de Inglês que não tem mão na malta e, zás, marca faltas de castigo a torto e a direito. Isso é que é lixado"
Porra! se é!!!
Olá, ó «Tu». Não está excluído que seja a Magrizela a ensinar algumas coisas ao Carlinhos. Não convém esquecer que ela, mesmo transformada em chavalita, já tem os seus catorze anos.
Um abraço.
Anita! Que palavreado! Mas, claro que é lixadíssimo. Acho que foi disso que o papa Bento falou ainda há uns meses e o Benard da Costa, que é um dos nossos comentadores mais honestos e, decerto, o mais inteligente, voltou a pôr o dedo na ferida, num artigo interessantíssimo: como é que um católico, um cristão, vá lá, pode tolerar o escândalo do mal? E colaborar com ele?
E esperar o perdão?
Aposta-se já aqui uma apostinha em como o Pinochet morreu confortado com todos os sacramentos? E acreditas que se arrependeu?
Pois, eu também duvido.
Até sempre.
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