quarta-feira, julho 04, 2007

O Cão que jogava xadrez XVII

Anúbis, o Deus-dos-Cães, ou se as minhas gentis Leitoras preferirem, o Deus-Chacal, tinha prometido resolver o problema do Carlinhos e que era, se se lembram, arranjar um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado para não largar pelos nas alcatifas.
Porém, mesmo tendo o olhar do artista que transforma e subverte o real - e por isso, aliás, tinha de usar aquela horrorosa e sebenta pala preta inibidora dos raios criativos, sim, mas incorrectíssimos do ponto de vista das políticas vigentes no Olimpo - não teve tempo de o usar.
Ou porque tinha levado uma pancada enorme na sua divina cabeça, ou porque as coisas são mesmo assim, mal levantou a pala do olho cego para realizar o milagre e já um vigoroso estrondo anunciava o despertar do desmaiado Guarda.
Não desejo, longe de mim, que a minha Senhorinha se ponha na situação de um Todo-Poderoso Guarda que acorda com um enorme galo na testa, o joelho sangrando devido à tábua com pregos do seu Primo Carlinhos, e, ainda por cima, as mãos e pés atados com arames.
O rugido de desespero foi tal que abalou as sólidas paredes de pedra e tijolo do centenário edifício.
Como, mas como?
Como podia ser assim contestada uma gestão de dois anos que reduzira a despeza do Canil em 18%, mesmo se, por causa do investimento e das despesas extraordinárias com os cartões de crédito da Gerência, o déficit de exercício aumentara uns ligeiros 34 pontos percentuais?
A sua fúria foi horrenda e temerosa.
Os arames resistiram a um primeiro puxão, mas ao segundo rebentaram e um coro de alarme ergueu-se entre os cães que, fechados ainda nas suas gaiolas, não tinham podido escapar.
Os próprios Diabretes se precipitaram, «ó da Guarda, ó da Guarda» esquecendo-se, claro, de que quem assim os assustava era o próprio Guarda.
Mas o Deus-dos-Cães já se erguia, pronto para a batalha.
- Vocês, ó bardajolas! Toca a pirar que isto agora vai ser a sério.
- Pirar para onde? - perguntou, não sem um certo sentido das oportunidades, o seu Primo Carlinhos.
Enquanto preparava o morteiro de 85, o Deus-dos-Cães, irritado, proferiu um ror de palavras que, pelo sua conotação, as minhas gentis Leitoras me dispensarão de repetir.
- Desapareçam, fosga-se! - acrescentou ele. - Tu e essa cadela sarnenta.
Uma bomba saiu do cano do morteiro e foi explodir contra a porta do matadouro, rebentando a parede, uma das vigas do tecto e fazendo cair uma infinidade de telhas. E logo outra granada, disparada pelo buraco recém aberto, ia direita ao telhado e rebentava pouco depois com uma chuva de cacos de telha, tijolo e raspas de madeira.
Anúbis, com um sorriso de orelha a orelha, acolitado pelos Diabretes que acorriam armados até aos dentes, bombardeava alegremenbte a sala onde, encolhidos nas suas gaiolas, cães, gatos e outros bichos mais ou menos inocentes se tentavam abrigar.
- Corre, - gritou a Magrizela.
E correram. As paredes ruiam, o telhado desmoronava-se, cães uivavam e Pitbuxos com cimitarras nos dentes e crisses malaios à cintura começavam a invadir a cozinha.
A Magrizela e o seu Primo Carlinhos escaparam-se por entre os destroços, uma granada que rebentou demasiado próximo - mesmo que fosse do outro lado do planeta ainda seria demasiado - deixou-os atordoados por um momento. Mas, felizmente, ali estava uma porta, daquelas de ferro que precisam de muito óleo e, volta e meia, nos entalam os dedos, mas que escolha havia?
A cadela Magrizela e o seu Primo Carlinhos precipitaram-se pela fenda entreaberta e logo a porta se fechou com um estrondo metálico e um bem-aventurado silêncio se fez.
- Então, - disse uma voz amigável. - Encontraste o teu cão, pelo que estamos a ver...
O Carlinhos olhou para cima e avistou as longas pernas e os jeans estreitinhos da garina que o tinha recebido à entrada. Estava corada e parecia feliz; respirava com força como se viver fosse uma agradável surpresa.
O Carlinhos achou-a mais bonita e, até, talvez, mais simpática.
- Não achas que é um bocado velhote para tu o levares? - perguntava entretanto a garina com a cabecinha loira um pouco inclinada. - O costume é vocês levarem um cachorrinho, sabes? São fáceis de educar, a tua mãe havia de gostar mais.
- Muito obrigado. Esta mesma aqui é que é, se puder ser.
- Então, tu é que sabes. Levas aqui o certificado e, não te esqueças: tens só quinze dias para o devolver se não se derem bem.
- Possas, a chavala é parva! - rosnou a Magrizela.
Mas, felizmente, a garina não entendeu:
- Ah, é uma cadela, e velha, ainda por cima... - disse ela. - Pronto. Aqui tens. Levas este cordão a fazer de trela, sabes, estes cães já não estão habituados a andar por aí, e além disso é a lei, ninguém cumpre, mas é o que diz a lei...
O Carlinhos despediu-se e antes de transpor o grande portão que o conduzia à rua, olhou em redor.
Nada indicava que a guerra continuasse lá no interior: o Carlinhos olhou para a Magrizela, achou-a uma velhota e perguntou a si mesmo se tinha sonhado com aquilo tudo.
- Bora daqui, - rosnou a cadela, ansiosa e mal-humorada.
E puxou pelo cordão até quase desiquilibrar o Carlinhos.
- Não é por aí - gritou ele. - É por este lado...
- Não grites, que eu não sou surda. É por esse lado porquê?
- Porque é a nossa casa. Vais tomar um banho e depois arranjo-te qualquer coisa para comeres...
- Um banho? Blheaac! Não podemos ir para qualquer outro lado?
- Não. Já estou com fome e, além disso, tenho de ir à casa-de-banho, tázaver? Já estou um bocado à rasca.
- Então? Qual é? Não tens aí árvores que bastem?
O seu Primo, Senhorinha, não soube o que responder. É que, pensava ele, mesmo se por palavras mais cruas, «como hei-de ensinar o que é pudor a uma cadela de catorze anos?»
E, se a minha Senhorinha, as nobres Damas e os bravos Cavaleiros o permitirem, como por hoje já estou cansado, deixaremos esta relevante questão para uma próxima vez em que eu me consiga esgueirar até aqui.
Pode ser?

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