quarta-feira, abril 30, 2008

Quem sai aos seus, voa baixinho.


Há já muitos anos, aí por 75, talvez, lembro-me de um jovem a quem se não chamava então «gestor», a berrar indignado! Chamava-se Pedro Costa, ou Sousa ou Alves, uma coisa assim.

Era licenciado numas Letras quaisquer, argumentava sempre com um esquema diante dos olhos e achava que, acima de tudo, tinha de se ser coerente.

Nós nem por isso: verdade era dialética, as contradições faziam parte do processo revolucionário e a vanguarda da classe operária é que era, nós, mais ou menos intelectuais só podíamos estar a seu lado. E passávamos horas à roda da mesa, como dantes soía, reuniões atrás de reuniões, a decidir da linha justa. Estávamos, como se dizia então, «a serrar presunto». O Pedro Alves, porém, que era maçarico naquelas coisas, achava que estávamos era a perder tempo. A bem dizer, a gente suspeitava de que ele se tinha apaixonado por uma senhora casada - as paixões revolucionárias foram mato, naquelas eras, quem não se separou nem participou em dúbios encontros que atire a primeira pedra - e queria aproveitar aquele bocadinho antes de ela ir ter com o marido.
Apesar disso, muitas vezes fomos dar com ele a trabalhar até altas horas no gabinete, com planos e reestuturações que eram chumbados liminarmente porque os sectores implicados tinham sempre coisas muito mais importantes em que pensar.
- Mas o quê, caramba, mas o quê? - indignava-se.
Não obtinha resposta... ou sim: relambórios revolucionários, cheios de palavreado redondo, parágrafos tirados do Lenine ou do Enghels.
- Tás a ver? - acalmava-o eu. - É um período revolucionário, pá, só acontece uma vez na vida.
- Mas qual revolução, pá? - gritava ele. - Se não há trabalho revolucionário, como é que há revolução?
Nós encolhíamos os ombros. Algum mais exaltado respondia que tudo isso eram conceitos burgueses, contra-revolucionários. Tarefismo. E por aí fora. O jovem gestor não tardou a ser suspenso, transferido, reduzido á sua insignificância; um dia, o Pedro chateou-se e declarou-nos que se ia embora.
- A gota de água, pá. - explicou-nos ele. - Atingi o meu limite. Não aturo mais aquele gajo. Ou sai o Director ou saio eu.
Tinhamos ido almoçar em grupo, ali adiante da Escola Politécnica que ainda não tinha ardido, e estávamos já nas bagaceiras. Eu tinha acendido o cachimbo com um tabaco pestilencial - era para o que dava o vencimento - e enchia a atafulhada sala com as largas baforadas de espesso nevoeiro, mas nessa altura ainda não era pecado.
- Qual Director? Ele há quatro! - perguntei eu
- Três. O outro é o presidente. - precisou o Leonel.
E o nosso camarada alumiou o nome ao santo.
A empresa em que trabalhávamos tinha sido considerada estratégica, tanto antes como depois de Abril, e estava cheia de «fascistas». Por isso achou-se bem que fosse intervencionada: os militares sucediam-se nos diferente pelouros e o Director em causa qualificara-se para o cargo pelo facto de ser Capitão, piloto aviador da Força Aérea, provável ex-bombardeador de tabancas indefesas.

A proposta que o Pedro Lemos, gestor gestor recém-eleito e, já agora, o engenheiro Lousa, responsável por um importante sector técnico da empresa, tentavam que fosse discutida dizia respeito à concentração dos múltiplos edifícios pelos quais se espalhava a actividade da empresa. O produto principal dividia-se por três edifícios, tão distantes uns dos outros que exigiam um corropio de viaturas para se manterem em contacto. A manutenção dos equipamentos, essa podia requerer, no mínimo, umas cinco oficinas, cada uma instalada num inferninho à parte. A empresa fôra, ao longo das décadas, adquirindo edifício atrás de edifício, aluga daqui, compra dali, para instalar tão importantes necessidades.

O património imobiliário era impressionante. Das complexidades correlativas nem se fala: diga-se apenas que um carrossel de carrinhas 4L girava incessante, por vezes com um só papel, mas acompanhado do respectivo protocolo - um caderno de capa preta que tinha de ser preenchido à mão - que devia ser assinado pelo contínuo do serviço destinatário antes de a carrinha, vazia agora, percorrer de volta o caminho para mais um molho de folhas.

Fazer um grande edifício que concentrasse tudo isto parecia ao jovem camarada, bem como ao camarada engenheiro responsável pelo produto, uma medida razoável. O financiamento estava á vista: bastava alienar dois ou três dos edifícios para garantir a viabilidade da nova sede.

- Vamos lá a voar baixinho, disse peremptório, o Sr. Capitão piloto aviador, pondo ordem na reunião de planeamento.

- A voar baixinho, estão a ver? Como é que os gajos querem que se faça alguma coisa? - e repetiu: - Se ninguém faz trabalho nenhum, como é que querem fazer a revolução?

- Tens a certeza de que alguém quer? - provoquei eu a escarafunchar no cachimbo que se tinha entupido. - Olha que eu não sei se acredite...

- E então, vais-te embora só por isso? - perguntou o Leonel.

- Só por isso? Achas que não chega? Um parvalhão que não sabe ler nem escrever, um analfabeto de pai e mãe, a mandar a malta voar baixinho? Se não tem envergadura para dirigir uma empresa deste tamanho, andor. Não vai ele, vou eu. Tenho mais que fazer, pá. Vou trabalhar para a Nanterre, que há lá muitos livros.

- Pá - intervim eu a pôr água na fervura. - Que é que tu queres? O gajo o que aprendeu lá na tropa foi a voar assim. E sabes porquê? Com aquelas latas velhas dos Fiates e dos T-3 e os helicópteros da Grande Guerra, eles têm é medo de ir mais alto. O programa revolucionário dos gajos tem de ser a mesma coisa, pá, é rasteirinho, pronto.

A resposta do Pedro Costa não foi lá muito bem educada e questão ficou por ali, que remédio. Ele partiu, escreveu uma meia dúzia de cartas aos amigos, publicou um par de livros, ainda me mandou um e o outro encontrei-o, por acaso, numa livraria em Montmartre, quando por lá andava com uma amiga, em turismo romântico.

- Olha, olha! - exclamei eu deliciado.

A Voilá veio espreitar, leu o título que falava da enteléquia e quis saber a razão dos meus entusiasmos.

Contei-lhe, por alto, com o fim da história, de que entretanto me inteirara.

Vinte e cinco anos depois da partida do Pedro (Lemos Costa, como estava na capa do livro), mais mês, menos mês, mais ano, menos ano, com alguns (bastantes, para não dizer muitíssimos) milhões de contos de prejuízos acumulados, a empresa contratou finalmente um gestor a sério: não importa a sua filiação partidária. Não parece que tenha saneado as contas, mas o que fez logo, além de despedir meia dúzia de pessoas mais ou menos incómodas, claro, e contratar meio cento de outras, foi vender os imóveis inúteis e concentrar os serviços.

Não soube dizer à Voilá, nem provavelmente o saberão, quer o Engenheiro responsável, quer o outrora jovem Pedro Costa, que luvas terá havido nessas transacções ou até, quem sabe, se não terá havido nenhumas. O que é certo é que, durante vinte e tal anos, a contar por baixo, se andou a voar muito baixinho.

Éramos assim antes do célebre dia 25. Mas como do nada, nada sai, assim continuámos a ser.
Quem quis ser diferente, emigrou. Nós, em matéria de voos, queremos e havemos de continuar a ser assim rasteirinhos, rasteirinhos...

2 comentários:

Anónimo disse...

Leste a crónica do José Eduardo Agualusa na Ler: " O que falta aos portugueses é pachora para subir escadas(...) Há tempos passeava eu placidamente, era um fim de tarde lento e melancólico, junro aos fortes porto~es do paraíso quando vichegar um portugu~es (..) São pedro recebeu-o com um fatigado abraço - lembrem-se que findava o dia - e estendeu-lhe um par de asas. O portugu~es protestou: " Eque farei eu com essas asas?" São pedro encolhendo os ombros magros. " ora filho, voa!" O portugu~es recuou, aterrado "Ah não! Isso é qe não pode ser! Fique lá o senhor com as asas que eu vim para aqui foi para descansar. E assim vamos nós

tacci disse...

Não, não tinha lido. Mas o Zé Eduardo bem pode fingir que é angolano: vê-se que é da mais pura água do Luso. Ou, pelo menos, conhece-nos de ginjeira.
Um abraço e obrigado pela citação.