Digamos desde já: este post vem a propósito da publicação de um livro, Guerrilheiro Sentimental, de Eurico Figueiredo.
Mas tornou-se mais complicado do que pretendíamos, quando, uma coisa leva a outra, começámos a pensar nas pessoas que admirávamos e, de um modo ou de outro, nos serviram de modelo. A geração da Crise Académica de 62, a que o Eurico Figueiredo pertence, por exemplo.
Quantas sobraram?
Quer dizer:
Roger Vailland, para quem não sabe ou já não se lembra, foi para a nossa geração, essa mesma que aprendeu a andar nesses anos, um autor de culto.
A expressão, hoje em dia, está tão desvalorizada que até às séries mais repugnantes da televisão ou aos filmes do Clint Eastwood se aplica.
Mas nós que frequentávamos as sessões dos cine-clubes, líamos Camus e Sartre e ouvíamos jazz com uma veneração talvez excessiva, tínhamos, de facto, um culto pelo autor de Drôle de Jeu e de Um homem do povo na Revolução. Vivíamos no regime sombrio de Salazar e os romances de Vailland ofereciam-nos um modelo de combatente clandestino menos miserabilista do que o proposto pelos funcionários do partido comunista.
Não foi sem alguma surpresa que soubemos ter Vailland decidido, já desde os finais dos anos cinquenta, apear das paredes o retrato de Estaline, abandonar o partido a que aderira durante a Resistência.
Não me lembro já da justificações para essas tomadas de posição. Fixei, no entanto, a jura que ele fez: nunca mais poria nas suas paredes o retrato de uma pessoa viva. Era uma coisa que fazia muito sentido para quem tinha de conviver com os retratos do Salazar e do Américo Tomás pendurados nas salas de aula, um de cada lado do Crucifixo(1).
E também nós jurámos a mesma coisa. Alguns tinham a Guernica, outros um poster do Che, mas só depois de o Che ter morrido. E o critério ficou. Quem poderíamos nós ter ter nas nossas paredes? E quem, se lá o tivéssemos posto, teríamos de apear?
Vi o Eurico Figueiredo, que me lembre, um par de vezes na vida. Empoleirado naqueles faraónicos calhaus com que o Estado Novo achava que se dava dignidade ao imenso portal da Faculdade de Letras de Lisboa, falava aos estudantes. Já tinha falado o Jorge Sampaio, não sei se o Medeiros Ferreira, nem me lembro já do que disseram. Não era muito importante: ousar falar em público, quando tínhamos todas as razões para acreditar que, no meio da nossa pequena multidão, havia pelo menos uma meia dúzia de de informadores da Pide, era já um acto heróico.
Devo tê-lo visto, depois disto, mais um par de vezes naquela a que depois se chamou a Cantina Velha e onde os estudantes iniciaram uma greve da fome.
Os anos foram passando, muitos, como ele, escolheram o exílio, outros foram à guerra ao "Ultramar" como o Abílio Teixeira Mendes.
Depois, o 25 de Abril aconteceu. E foi curioso ir observando as carreiras.
O Eurico Figueiredo escolheu ser médico, foi até à Assembleia da República duas vezes, creio, defendeu as suas posições com a mesma convicção com que falara das escadas da Faculdade de Letras, tantos anos atrás, foi contra a lei do aborto (o estafermo!) e não foi ministro de coisa alguma, nem da Educação, nem da Saúde. E agora dedica-se a produzir um vinho, o Solar do Prado.
O retrato dele, se o tivéssemos pendurado na parede junto com os da sua Geração, estaria a ficar muito sozinho. Mas teria resistido. Honra lhe seja.
E era o que queríamos dizer a propósito do Guerrilheiro sentimental, Estórias de Exílio, Campo das Letras, 2008. Leiam-no.
Vale bem a pena.
(1) Não resisto a citar a velhíssima piada do Cristo crucificado entre dois ladrões. Desculpem.
4 comentários:
Não perdeste o ensejo para a meledicênciasinha anticomunista rasteira. Vailland não devia ter colocado o retrato na parede. Está vivo um homem, que não precisa de mim para nada, mas que eu seguiria sem hesitar para onde me guiasse. (Se fosse parar a algum mau lugar não o censuraria.)
Admiro Vailland, o intelectaul libertino. Não aquela versão censurada que o pseudo-correcto Cardoso Pires divulgava nos anos 60.
Vailland toxicodependente,homossexual, putanheiro, foi um grande escritor e um interventor de mérito.
Do que não gosto mesmo é de hipocrisias.
E vê lá se me emprestas o livro do Figueiredo.
Meu caro Badesse:
Maledicência, eu? Ensejo para quê? Acha que eu preciso de aproveitar ensejos?
Eu tenho o orgulho de dizer exactamente o que me apetece com o único limite de não descer ao insulto.
Detesto um fulano chamado Aníbal Cavaco Silva, mas não desço a chamar-lhe as coisas que penso que ele é.
Por isso, posso dizer-lhe a si, meu velho, que anticomunista rasteira era a sua Avozinha e casou-se.
Não sou anti-comunista, nem nunca fui, e pró, se se lembra, ainda menos.
Sou anti-estalinista, anti-leninista quiçá (mas aqui, eventualmente mais disposto a compreender as asneiras dele, sobretudo porque foi uma época difícil), muito mais Rosa Luxemburguista, por exemplo, do que Trotskista, leitor do Bataille e de muitos outros que tentaram compreender os erros cometidos.
Sou um homem livre, que pensa pela sua cabeça e admite que pode estar a pensar mal; que não engole sapos; que, se não pode dizer a verdade como a sabe, cala-se: não mente, por muito política que seja a mentira.
E considero o Roger Vaillant exactamente na mesma medida: tentava ser um libertino no sentido clássico, isto é, com direito a ser ele o juiz das suas próprias opiniões. Não quero saber das suas opções sexuais: que era um frequentador de prostitutas, que tomava anftaminas para trabalhar e por aí fora, ele próprio o declara; não me consta que fosse homossexual, mas isso seria a sua opção, não me julgo com direito a ralar-me com isso. E o meu caro Badesse leu as mesmas coisas que eu li: onde estão os documentos que lhe permitem afirmar isso tão peremptoriamente? Não será uma maledicênciazinha sua?
Para terminar, duas coisas:
Primeira, o bom do Cardoso Pires nunca foi, para mim uma referência como foi para outros: como escritor, considero-o um excelente carpinteiro da literatura. Como pessoa, conheci-o mal e, do que me foi possível ver, não gostei demasiado. E mais: não há um único livro dele que eu conserve na minha estante.
Segunda: muito honestamente, invejo-o. Ter alguém a quem seguir, não digo já cegamente, mas ao menos com confiaça, é admirável.
Houve, há muitos anos, uma pessoa em quem eu decidi confiar no meio da confusão do prec. Não me arrependi.
Mas era, em calhando, demasiado honesto. Exerceu o direito a "ir-se embora". Deixou-nos a todos a contas com os bichos.
Compreenda, meu caro Badesse, por que motivo hoje me resta declarar-me "le seul maitre à bord
après Dieu, s'Il existe."
Um abraço.
Apenas para responder à sua pergunta: A pelo menos mais extensa biografia de Roger Vailland,Un libertin au regard froid, Yves Courrière, Plon.
Bom, meu caro, terei de lhe apresentar as minhas desculpas: não lemos, de facto, as mesmas coisas.
Um abraço.
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