1935
1.
Lá em casa, quando eu era miúdo, usava-se imensas vezes uma frase enigmática que quase sempre fazia rir os graúdos.
A frase em si não tinha graça nenhuma:
- Olha, deixa isso para Agosto! - dizia-se.
2.
Advirto desde já: este post, mesmo se não parece, é sobre uma jovem Senhora, de seu nome Joana Alegria (e que nome bonito o seu!), que teve a péssima ideia de ter o seu bebé fora da época.
Repito: fora da época.
Com isso perdeu o concurso em que era candidata, não a deixaram frequentar um curso de formação e, pronto, está desempregada.
- Mas quem, Deus do Céu? - perguntais. - Não há responsáveis por uma coisa dessas?
Responsáveis? Não, claro. Foi o Ministério da Justiça...!
Lá em casa, a minha Mãe teria perguntado com aquela ironia que serve sempre de disfarce às tristezas, às frustrações:
- Olha, Filha, porque é que não guardaste isso para Agosto? - e, claro, ninguém teria rido.
3.
Não é caso inédito: sei lá quantas carreiras promissoras foram já destruídas porque as jovens, hélas!, se me permitem o eufemismo, seguiram a natureza. É que, como ela não é de muita confiança, os bebés acontecem. E como o aborto nem sempre é solução - e nunca é para certos sectores ou para certas sensibilidades - os homens (e as outras mulheres, ora pois) vingam-se:
- Andaste a divertir-te, não foi? Agora amolas-te.
E pronto, a aluna perde o mestrado, a professora não muda de escalão, uma outra jovem não consegue passar na entrevista para o emprego por causa de um certo epessamento na cintura...
Um dia alguém terá de pensar a sério esta recusa perante a sexualidade alheia, sobretudo se são jovens.
Direito a uma sexualidade sã? Educação sexual nas escolas? Nem pensar!
Proteger a maternidade? Bom, dá-se aí mais uns dias para amamentar...
Aborto? Pá, teve de ser, à segunda, já não conserguimos... mas só até às dez semanas, hem? E pílula do dia seguinte, só com receita médica... ah, não?
4.
4.
Mas, pronto. Se me permitem, deixemos a Joana Alegria por uns intantes e vamos à história do «guardar para Agosto».
Aí pelos anos vinte e tal, trinta, do século passado, a praia que a minha família frequentava tinha sido muito melhorada e embelezada.
Como noutras praias da nossa costa, a areia ficava lá muito em baixo, ao fundo de arribas quase a a pique. Os melhoramentos consistiram, então, em escadarias de cimento, umas mais larguinhas, outras estreitas e compridas com degraus altos a causar vertigens, interrompidas, de tantos em tantos degraus, por acanhados patamares.
Ali, pensara decerto um arquitecto, podiam as pessoas mais idosas descansar da subida sentadas em bancos, de cimento também. Os mais novos, esses aproveitavam para tirar a areia dos dedos dos pés e calçar os sapatos.
Toda a subida era ainda acautelada por uma espécie de corrimão feito de retorcidas pedras soldadas umas às outras com o inevitável cimento, reforçado interiormente com ferro. Aqui e ali, um pedaço de azulejo ou um caquinho de barro davam a nota alegre do descuido dos pedreiros: era o embelezamento.
5.
Não sei se há memórias descritivas dessas obras.
Suponho que tentavam imitar um qualquer «natural» imaginário melhorando consideravelmente a própria natureza: encontramos tentativas dessas um pouco por todo o lado, por exemplo, em «grutas» onde cresciam avencas e uma bica deixava escorrer um fio de água.
As câmaras municipais odeiam-nas. Substituem as bicas por torneiras pinguentas, a escorrer uma baba verde na ponta de um cano. Aquando das requalificações urbanas, destroiem-nas sem dó nem piedade.
O lago do Jardim da Parada, em Lisboa (coração do bairro de Campo de Ourique, com abundantes cafés e a Livraria Ler, se não sabiam) foi vítima de igual sanha destruidora.
Já não está na moda imitar seja o que for: os arquitectos descobriram a palavra «pastiche», lançaram sobre ela o mais absoluto dos anátemas e zás! Sentiram-se desobrigados de ter um gosto qualquer, nem que fosse mau e desataram todos a desenhar as mesmas coisas.
Não sei se imitar nem que fosse o Raul Lino não seria bastante melhor, mas os pato-bravos, claro, agradeceram.
Tenho a ideia de que restam ainda uns quantos desses românticos arranjos, por exemplo, no Jardim da Estrela, mas já não acredito muito.
Mas, adiante, não façamos esperar demasiado a Joana Alegria (que, repita-se, tem um nome bem bonito).
6.
6.
Uma das escadarias da nossa praia, então, terminava cá em baixo, já quase na areia, alargando-se, dividindo-se em dois lances mais espaçosos, um para o lado norte, outro para sul. No vão desses lances ficava o «estaminé» que vendia baldes e pás de folha, forminhas para fazer bolos de areia, bolas coloridas, ringues para jogar ao «mata», pregos de vidro translúcido para jogar ao prego.
E, supremo melhoramento: passou a haver casas de banho, uma para as senhoras e, do outro lado, a dos homens.
7.
E estamos a chegar ao que importa:
Passados anos, já estas melhorias tinham perdido a novidade, o inevitável aconteceu: prováveis cortes de verba, alguma indiferença, sabe-se lá, o «estaminé» e as casas de banho só abriam a partir de Agosto e até meados de Setembro, o que, imagina-se, causava a indignação dos veraneantes que tinham casas à época e começavam a fazer praia logo a seguir aos Santos.
Ora acontece que, um dia, estando nós (ou os nossos irmãos mais velhos, não faço ideia) já brincar na areia, as nossas mães, naturalmente queixavam-se, «pois, só os veraneantes que vinham de Lisboa, os que tinham férias em Agosto é que eram importantes. Os outros, minhas amigas, não eram ninguém...» e por aí fora.
Estavam nesta amena cavaqueira, quando um dos miúdos, numa urgência anunciada pelo ar aflitamente encolhido, veio reclamar:
- Mãe. Quero cócó.
A Mãe, de imediato, retorquiu-lhe:
- Ó rapaz, deixa isso para Agosto.
8.
A frase ficou.
Dizem que já não há amanhãs que cantam, mas, disso, não sei nada. O que sei é que, pelo menos, a esperança de Agostos com os «estaminés» abertos, de um arzinho de férias, ao menos uma vez por ano, isso ninguém me consegue tirar.
A Joana Alegria, que, creio já ter dito, tem um nome lindo, só restava ter esperado pelo mês certo.
É que, como diz o Mário de Carvalho, este povo não tem emenda.
11 comentários:
Muito bem, Tacci. Delicioso!
jad
Ó Tacci, tem razão, aquele Jardim da Parada!... A natureza era de tal forma que aquela fontinha maravilhosa, constituida por uma enorme rocha com buracos de onde saía água fresca, e onde saciávamos a sede naqueles Agostos quentes, até tinha lesmas para provar a qualidade da água que bebíamos. Acabaram estúpidamente com ela. Não passo uma vez por lá que não vá olhar e lamente não a ver.
Faço minhas a palavras de jad
Jad:
Obrigado.
Graza:
Palavra que não sou saudosista. Mas aquele jardinzinho até pavões tinha, lembra-se? E a Maria da Fonte tinha braços e uma pistola de bronze.
Porquê, Anita?
Já não tem palavras suas?
às vezes tardam, Tacci, ou sinto-as tão deajeitadas que tenh vergonha de as dizer
É impressão minha, ou reconheço mesmo alguém na fotografia?
Badesse
Sérgio:
Claro que conheceste, embora não em 1935.
Sobre a foto tirada na Praia de Santa Cruz -------- a data de 1935---------refere-se a idade da criançinha ( queres ver que sou +- 10 anos mais velho, sem saber) ou è o mano ou ......
RB
RB
Perspicaz, hem?
É o mano mais velho, claro.
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