As mulheres, quando não são simplesmente a metade fêmea do lusopitecus quèobrensis graniticus ou de qualquer outro piteco afim, são um espanto.
Primeiro, pura e simplesmente por existirem.
Depois por serem bonitas.
Enquanto nós, homens, somos uns estafermos peludos e mal-encarados, elas têm encanto e, por vezes, até conseguem ter classe.
Nós bem podemos vestir casacos de tweed com cotoveleiras, fumar ostensivamente os nossos cachimbos: ao pé de uma Carla Bruni, por exemplo, qualquer um faz figura de Sarkozi senão de Cavaco Silva ou Berlusconi.
Têm elas, além disso, uma característica perturbadora.
Mesmo quando se divertem e riem, a vida é, para elas, uma coisa extremamente séria.
Só para dar um exemplo:
Há um senhor(1) que se dedica a fazer jogos e quebra-cabeças que, depois leva às feiras de artesanato.
Alguns são tão clássicos como o peg solitaire que, reza a lenda, foi inventado por um prisioneiro na Bastilha e terá levado ele próprio muitos anos a resolvê-lo.
Outros são versões simples ou elaboradas do jogo do galo ou do Mariembaad. Mas o referido senhor não se limita a construí-los: também os inventa.
É da sua autoria o quebra-cabeças que a senhora do desenho ali em cima estava a tentar resolver.
Claro que eu não assisti à cena. Foi-me relatada já em segunda ou mesmo terceira mão, portanto a senhora que eu desenhei não tem nada a ver com a protagonista da história.
Mas vamos aos factos.Como muitas e desvairadas gentes quando passam pelo stand, a senhora pegou num e noutro dos jogos, pediu explicações, agarrou num quebra-cabeças (Pythagoras de seu nome) e foi desafiada pelo artesão a resolvê-lo.
Tratava-se de soltar um anel enfiado num cordão e que, de um lado está preso por uma complicada estrutura de madeira; do outro, o cordão passa pelo interior de uma bola de madeira também, cujo diâmetro maior impede a passagem do anel. Um nó simples prende a bola.
Trata-se, portanto, de retirar o anel sem, condição absoluta, o desatar.
Quando o Alexandre Magno se deparou com o célebre nó Górdio, a sua atitude não deve ter sido muito diferente do daquela cliente. Deve ter mirado e remirado de todos os lados, coçado a cabeça e tomado a sua decisão. Alçou a espada e, zás.
A cliente não foi tão expedita, ou porque lhe tivesse faltado a tesoura ou porque não quis estragar o jogo. Mas aferrou-se a ele com uma decisão firme, dedos fortes a empurrar a argola contra a esfera, «não hás-de ser mais teimosa do que eu», e crac: a argola cedeu na soldadura, e, um tanto amolgada, soltou-se do cordão.
A senhora abriu um largo sorriso e apresentou ao feirante o enigma resolvido.
Não há nada a dizer, pois não?
Quando um jogo, como o futebol, por exemplo, é encarado a sério e é assumido como de vida ou de morte, fazer faltas, mesmo as mais violentas, considera-se, enfim... aceitável.
Como censurar, então a senhora, pela dedicação ao prob O nome lema e pela solução encontrada?
E ficamos com um problema:
Se aceitamos, com Gregory Bateson, nos Metadiálogos, que, quando não nos sentimos tentados a fazer batota, a contornar as regras, então é porque não estamos a encarar o jogo a sério, a conclusão é a de que a democracia nunca pode passar de uma brincadeira, um jogo que se joga quando as coisas não são importantes.
Claro que as mulheres, desde sempre nos deram exemplos de que nem tudo pode ser submetido a consensos e, muito menos, a votações. A vida dos filhos, por exemplo.
Mas, para que isto não seja um simples argumento a favor da força, onde está a falácia?
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1) O seu nome e a profissão, bem como outras referências pessoais, foram retiradas deste texto a pedido do interessado.
6 comentários:
O consenso corresponde aproximadamente a um jogo de soma nula: ninguém ganha, ninguém perde. A democracia pode tornar-se nesse jogo, aparentemente elevado, respeitador das diferenças, promotor de igualdades etc.etc. através dos consensos e acordos de bastidores ou passos perdidos. Contudo, como em qualquer jogo, o consenso deve existir em relação às regras, não em relação ao resultado. Claro que, se for possível, pegamos na bola porque é nossa, acabamos com o jogo que não nos está a correr de feição e iniciamos outro mudando as regras e até os jogadores. Mas isso é outra história...Como falantes, ao jogarmos uns com os outros, aceitamos regras linguísticas comuns que nos permitem entendermo-nos, mas a conversa, a discussão, o debate, o diálogo, ou outros processos comunicacionais, não estão prisioneiros nem do acordo, nem do consenso. Como Habermas refere, depende apenas do "desejo de intercompreensão". É que nem tudo é discutível em busca de consensos ou acordos. Daqui não resulta, obviamente, a apologia da força ou da violência. Isso é próprio das bestas. O homem defende-se com a razão. Aristóteles dixit. Falando. Mostrando. Convencendo.
jad
Jad:
O que me preocupa sobretudo é essa «outra história», como dizes.
O problema do nosso tempo não é, se calhar, a justificação teórica da democracia, desse jogo de soma nula em que a vitória de um é a vitória de todos: é o que fazer ao menino que «não brinca», que não deixa brincar e se acha com direito a ser violento porque, por ser ele, é a excepção.
E é a violência que Atenas exerce sobre os seus Sócrates - os verdadeiros, claro.
Mas, tens razão, é outra história.
Tens razão, Tacci. Mesmo tratando-se de "outra história, e, se calhar, pelo facto de o ser, deve merecer toda a atenção. Todos sabemos que, apesar dos seus méritos (são muitos e essenciais à nossa vida em comum como cidadãos, como homens livres que habitam um tempo e um espaço comuns), a democracia tem limites (também são muitos). Penso que o principal tem a ver com a confusão entre persuasão e demagogia. Aquela, todos o sabemos, é um exercício fundamental no exercício livre do pensar livre em sociedades livres; a demagogia é um exercício de domínio puro e simples recorrendo a um simulacro persuasivo. O perigo, como bem dizes, está no aparente exercício livre do pensar, da escolha. Na realidade apenas se escolhe o que as máquinas opinativas (aquelas que criam a eufemística "opinião pública") determinaram. Daqui até ao menino que impõe as regras, que as muda e as usa como e quando lhe convém, é um passo relativamente curto. Mas ainda é um passo...
Portanto, o que fazer? Penso que o mais elementar bom senso é impedir que o dono da bola alguma vez se sinta como o único a possuir a bola com que se possa jogar. Se houver mais bolas, a escolha de uma em detrimento de outra exige diálogo, discussão, argumentação, persuasão. Já não bastará interromper o jogo... E ali entram os Sócrates - os verdadeiros, claro :):) - para nos recordarem que "não vale tudo menos arrancar olhos" e que a "demos-cracia" é o poder da comunicação (diálogo, discussão, persuasão) de dimensão ética. Mas isso obriga-nos a não ficar no fundo da caverna olhando as sombras. E como é difícil a subida até à luz!... Não é muito mais fácil, como dizia J Sousa Monteiro, ter quem pense por nós? Claro que é! Não é muito mais fácil jogar com a bola dos outros, poupando a nossa ou não tendo de comprar uma? Claro que é! Saberemos que nos torna reféns da vontade, do poder - da vontade de poder - dos donos da bola? Claro que não!
Que chatice: voltamos ao mesmo!
jad
Jad
Nunca soube bem o que era a persuasão e sempre a pensei como uma parente pobre da demonstração.
Quando não somos capazes de mostrar, recorremos aos artifícios da retórica, simplifico eu, porque ninguém nos dá alternativas.
É o dilema dos pais e dos professores, não é?
É muito mais fácil doutrinar os filhos ou os alunos do que levá-los à compreensão; forma(ta)-se mais depressa o trabalhador, a economia agradece, a senhora ministra fica muito babada com o seu próprio sucesso.
Mas nós exercemos uma violência sobre a inteligência dos nossos juvenis e, por extensão, sobre toda a nossa espécie.
Abrimos as portas a todas as demagogias, como tu próprio dizes, e as demasgogias a tudo o resto: como somos donos das palavras, chamamos-lhe «danos colaterais», porque soa muito melhor às boas consciências.
Não teremos de voltar um pouco atrás, ao despotimo esclarecido e partir outra vez daí?
Talvez! Mas para isso não teríamos de admitir que existe A verdade e que alguém é seu detentor e que, portanto, pode ou deve impor essa verdade porque só ela é certa e aceitável? (Neste caso o dever pode tornar-se muito constrangente e perigoso com laivos de absolutismo). A doutrinação não é precisamente isso? Será que, amigo Tacci, a incerteza, a dúvida, o problema ao nos imporem a busca constante por novos caminhos não nos levam também à busca das melhores razões que os sustentam, que os justificam? Claro que, sabes muito melhor do que eu, há sempre o risco de cairmos onde os não assumidamente cépticos sempre procuram evitar: o subjectivismo céptico. O "vale tudo menos tirar olhos". Agrada-me pensar que podemos escapar-lhe sem cairmos no absolutismo da razão absoluta.
Parece-me, amigo Tacci, que temos mais pavio para queimar!...
Abraço
jad
Era para fazer um post com mais uma achazinha para esta fogueira, mas a morte do João Bénard da Costa (que deus lhe fale na alma)
não me deixou.
Mas amanhã ou depois já estara ali em cima.
Um abraço.
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