Aviso desde já: o que vou dizer, em calhando, é um monte de disparates.
Mas tenho de os dizer à mesma porque sou um leitor do João Bénard da Costa e ele parou de escrever.
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Sabem daquelas pessoas com quem nós embirramos sem motivo? Não as conhecemos de lado algum, devemos ter-nos cruzado inúmeras vezes pelos lugares comuns da nossa cidade, mas nós não demos por isso e elas, certamente e com muito mais motivos, também não.
Quero crer que se trata apenas do meu mau feitio: detesto, mesmo sem as conhecer, as eminências pardas.
Eu explico: uma eminência parda é uma figura florentina: esgrime com a palavra - que domina bem melhor do que o comum dos mortais - leu mais do que aquilo que compreende, mas usa as citações como o polvo usa a tinta.
À falta do poder, mas suspirando por ele, tem uma paixão.
É poeta.
Ou historiador; sabe tudo sobre o século XIX.
Ou literato: Dante não tem segredos para ele.
E é perito em antiguidades: em casa da Avó Matilde havia sempre «uma consola muito parecida, mas tinha o brazão dos Albuquerques aqui...»
O seu modo de vestir oscila entre a gravata de seda natural e o colarinho aberto. «Vejam como eu estou à vontade em todo o lado», parece dizer.
Mas nunca veste uma camisa de menos de cem e tantos euros.
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O João Bénard da Costa tinha quase tudo para entrar nesta categoria.
E, ainda por cima, tinha dois defeitos:
um: era católico e eu não sou.
dois: era um apaixonado por cinema e eu, nos últimos dez anos, devo ter ido ao cinema umas cinco vezes, mas, por mais que me esforce, só me lembro de dois dos filmes: um era do João César Monteiro, Vai e vem, e outro era Le fabuleux destin d'Amélie Poulain de Jean Pierre Jeunet.
O João Bénard da Costa, esse lembrava-se de tudo. Filme visto aos onze anos, aí estava ele com os detalhes mais íntimos de um verdadeiro voyeur: o tornozelo de Cid Charrisse, a golinha de renda sobre o vestido de luto de Gene Tierney no papel de Mrs. Muir.
Mas, por estranho que seja, pelo menos para mim mesmo, nunca o incluí na categoria dos pedantes, bêtes noires da cultura, fiscais de bem-pensanço.
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O que, para lá das muitas reservas, me fazia ler-lhe os textos - ultimamente no Público - sempre que me vinham parar à mão, não o sei precisar.
O que, para lá das muitas reservas, me fazia ler-lhe os textos - ultimamente no Público - sempre que me vinham parar à mão, não o sei precisar.
Mas há coisas que se tornam evidentes, mesmo a uma primeira leitura.
Uma era o claro bom gosto da sua escrita.
A Cid Charrisse era linda. Não do mesmo modo que a Gene Tierney, mas mesmo assim. E os filmes, no seus tempos de ecrã, eram púdicos. Mostrar, por exemplo, a Esther Williams em fato de banho era já uma ousadia, só permitida a pretexto das cenas de natação. Mas, fiel ao bom gosto, Bénard da Costa evitava falar de coisas como as generosas coxas a ver-se: em todo o caso, o tornozelo da Cid Charisse era igualmente bonito e muito menos banal.
O que lhe importava era aquele pormenor em que só ele reparara, que parecia estar ali unicamente para lhe procurasse um sentido: os seus textos eram os rèves de um promeneur solitaire. Dessa réverie nos ia dando conta semanalmente partindo de um filme, de uma memória, de um acaso.
Os filmes, quando lia as suas crónicas, pouco me interessavam: não os tinha visto, não tencionava vê-los. Para mim, só o passeio do sonhador era importante.
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João Bénard da Costa, julgo eu, pertencia àquela rara minoria dos sonhadores práticos - que não perdem de vista os objectivos mesmo quando deixam à solta a imaginação e a memória - mas não são a mesma coisa? Ver filmes, recordá-los, restaurá-los, preservá-los para voltar a vê-los, era, ao mesmo tempo, o seu sonho e a sua tarefa.
As imagens que desse sonho lhe iam ficando eram-lhe pretextos no sentido mais elementar e etimológico do termo: eram pontos de partida, prévios ao texto, desencadeadores de uma escrita em que tudo comunicava com tudo, à semelhança do próprio mundo em que ele vivia. Uma cinematéca não é o ponto onde as culturas, as mundividências, as utopias se cruzam, se interpenetram, se recombinam?
Estou em crer que a sua religiosidade tinha essa componente, sincrética talvez, e profundamente mágica em que o alto e o baixo, sagrado e profano, simples e complexo, se comunicam e se fundem no mundo das palavras: nos seus textos a Universidade de Oxford podia ser (e foi) o ponto de contacto entre Fritz Lang com o seu monóculo e um pintor como Ingres. E muitos e muitos outros exemplos podiam surgir-nos: ando a reler as suas crónicas aqui e não me lembrava de ter falhado tantas.
A minha memória não é como a dele.
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Comecei por avisar de que ia dizer disparates e, se calhar disse.
Mas eu, que querem? Estou de luto e não quero saber disso para nada. E o João Bénard da Costa era bem capaz de soltar uma das suas gargalhadas graves e um tanto roucas: para ele, o direito ao disparate era inalienável.
Pelo menos, até se lhe esgotar a paciência, o que, para ele, como direito seu, não era menos inalienável do que qualquer outro.
E agora vou deitar umas pedras de gelo no meu whisky e bebê-lo à memória dele.
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7 comentários:
Caramba, Tacci, que lindíssima homenagem! Mesmo temdo em conta a importância que atribuo à escrita hesito entre o elegantíssimo texto e a extraordinária expressividade do desenho. O conjunto é uma delícia. Bénard há-de, certamente, estar deliciado. Parabéns!
jad
Obrigado, Jad.
Mas qual o quê! O Bénard, a estas horas nem olha cá para baixo: está numa boa, com uma aguardente velha e um charuto, à conversa com o Fritz Lang e o John Ford.
Á sim! Especialista em Dante? O que eu conheço é eminência pardíssima.
As últimas que me lembro de J. Bénard, foram uns bons programas, acho que na Antena 1, ao Sábado, onde debatia com mais dois residentes. Dos três, o único que me consigo lembrar é dele. Não deve ser por acaso.
Olha, olha! E não há-de gostar dos elogios fúnebres que lhe hão-de fazer! E há-de escolher os amigos com quem há-de alimentar a eternidade! E há-de habitar os fantasmas que atormentam os infelizes moradores da sua sombra! E, claro, há-de brindar aos amigos nas tertúlias que há-de promover entre as estrelas do seu céu!
jad
E há-de brindar os amigos com o troar do trovão da sua gargalhada.
Tinha-me falhado esta.
jad
Pois é, Graza.
Também me lembrei dessa dantesca figura. Ou de uma parecida, que eles são mais que a praga.
Sim, não tinha pensado nisso: deve ter sido convidado loga para a mesa do Rabelais e riem-se todos como perdidos (o Nuno Bragança também lá está) enquanto, pelo canto do olho vão espreitando as Marylin Monroe, que as há com fartura no Céu.
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