A Beatriz Costa já cá não está para me perdoar o abuso. Para ela, jovem nos anos quarenta, os Vascos, obviamente, eram Santanas.
Os tempos mudaram, como sempre fizeram e hão-de fazer, pelo menos, enquanto o Pai Cronos que é o dono das ampulhetas os deixar brincar com a Criação.
E quando esses mudados tempos vieram, as Beatriz Costa e as Amália Rodrigues deram-se conta de que também os Vascos não eram os mesmos.
Agora era o Vasco Lourenço, claro, capitão em Abril.
E o Vasco Gonçalves que depois foi primeiro ministro.
Diga-se o que se disser: quando por um qualquer erro da Mãe-natureza, certamente congénito, também eu ligo a televisão e me ponho a olhar, a primeira coisa que me assalta é a saudade dos discursos do Vasco Gonçalves.
Eu sei que ele era comunista, o que, hoje em dia, corresponde mais ou menos a ser um melquetrefe desclassificado.
Mas quem não foi, ao menos, compagnon de route, colaborador ou cúmplice numa qualquer fase da sua vida, das duas uma: ou era ferozmente salazarista como a Senhora minha Avó que Deus guarde, ou era tontinho da cabeça. E a alternativa não é exclusiva: muitas vezes, acumulavam.
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Percebam que não estou a falar de quem, felizmente, é demasiado novo para compreender o sufoco em que se vivia nos tempos de O Pai Tirano ou de O Pátio das cantigas.
Do que estou a falar é do Senhor Cardeal Patriarca a abençoar as tropas que iam para as colónias enquanto as polícias, a política e as outras, perseguiam os desertores, os emigrantes que tinham de ir a salto para França. Do que estou a falar é do número ridículo de estudantes que chegavam à faculdade e depois conseguiam acabar um curso. Do que estou a falar é dos bairros de lata que foram crescendo à volta de Lisboa e do Porto. Do Delfim, que tocava clarinete na filarmónica e vivia numa casa de terra batido, telhado de telha vã, sem água nem esgotos.
Do que estou, enfim, a falar é dos movimentos de libertação das ex-colónias que, ao ganharem a guerra, não libertaram só os pretos de lá. Libertaram-nos também a nós, os pretos de cá.
E, nos discursos do Vasco Gonçalves, ao fim de anos e anos santimoniosos, de untuosas palestras, surgia uma espontaneidade, uma tão grande fé nos humanos que, concordasse-se ou não, cativavam.
Mas, claro, ele era um major do nosso pouco glorioso exército.
Para os militares como ele, as coisas são simples, as pessoas são honestas ou não, trabalham ou não, são exploradoras ou são exploradas, é tudo sim ou tudo não. As meias tintas, a conversa para empatar, não lhe cabiam no discurso: meio jantar pode ser melhor que nada, mas não é jantar nenhum, ponto.
Foi fácil chamar-lhe Vasco, o Louco, como ao Francisco Costa Gomes chamaram o Chico Rolha. A louca sinceridade sempre assustou os bem pensantes que têm estômago para engolir tudo menos uma verdade crua.
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Cronos, entretanto, abanou as ampulhetas outra vez.
E a pouco e pouco fomos assistindo ao regresso do discurso da Senhora minha Avó.
Ela não era monárquica: era talassa. Com muita honra!
E repetia: Muita honra!
Contava com orgulho as pequenas patifarias da Tia Margarida pelos idos de 1910, de loja em loja a perguntar:
- Tem bolo-Rei?
E quando o orgulhoso empregado lhe dizia que agora, com a República, se chamava bolo-Nacional, respondia:
- Então, muito obrigada, mas não quero!
Também a minha Avó se recusava a aceitar que, quase sempre, se tem de mudar o nome às coisas para que elas fiquem na mesma. Ou, quando não se quer uma coisa, deixa-se-lhe o nome e sapam-se-lhe os alicerces. Escuso de dar exemplos, não escuso?
Para ela, o Salazar era tudo. O salvador da paz e da tranquilidade, a dela própria para começar.
O guardião da decência.
O seu único defeito? Não era bonito, não dava explendorosos bailes em Queluz.
Quanto ao resto... o resto não havia! Nós não nos metíamos em coisa nenhuma! Que ficasse bem claro!
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Claro que nos metemos.
Timidamente embora, fomos às manifestações. Distribuímos comunicados das Associações de Estudantes, o Avante, o Recuante e o Laterante, todos com montes de foices e martelos, todos dos verdadeiros partidos da classe operária. Muitas vezes recebíamo-los em embrulhinhos e distribuíamo-los antes mesmo de os ler. E houve outras pequeninas coisas que agora já não interessam, que não fizemos para que nos agradecessem.
Mas os tempos passaram e um outro Vasco escreve, com a maior das naturalidades: "parece que, no fim de contas, Salazar não se enganava [1]: Portugal prefere um único partido (se não exactamente um partido único). Um partido 'neutro', sem cor e sem princípios, com a autoridade necessária para salvar a pátria de si própria. Pela força, como é óbvio." E conclui, linhas mais abaixo que "a solução lógica seria assim eleger em Outubro uma força parlamentar irresistível, limitar a liberdade de imprensa (em sentido lato [2]) e submeter a justiça às conveniências do executivo." (Público de 30 de Maio)
Neutra, essa força irresistível?
Talvez. Mas a Europa, nos idos de 1933, não teve uma boa experiência com a eleição de "uma força parlamentar irresistível" na Alemanha. E ver o Vasco Pulido Valente a escrever as coisas que e Senhora minha Avó dizia aos oitenta anos, confesso, não me deixa nada tranquilo.
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1] E, decerto, raramente tinha dúvidas. O VPV não se pronunciou.
2] Lato?