quinta-feira, novembro 16, 2006

...duas respostas.


Soubeste, claro, que estive em Ceuta, no ano passado. Um capricho? Não sei. O cheiro a sal, claro, e os mastros rangendo, o bater das velas... Sim, tudo isso. E também porque queria espaço, o largo.
Tu que viajaste, recordas-te dos teus primeiros dias no mar?
O que ainda sinto de cada vez que me vem à memória é espantosa beleza de toda a costa, as praias de areia... rosa? De que cor são as praias, tu que te dizes poeta? Da cor do pão branco, um pouco tostado pelo forno, concordas?
E os cheiros, aquele cheiro da madeira molhada, salgado e azedo a um tempo.
Dizem que embarquei secretamente. Não vale nem um encolher de ombros. Como se eu conseguisse dar dois passos sem um jesuíta na minha esteira. Hei-de falar-te dos jesuítas um dia, quando calhar.
Não: fui lá para ver com os meus próprios olhos. Um governador, seja da mais pequena das praças fortes, até ao Vice-Rei das Índias nunca consegue saber coisa nenhuma... Não, espera. Quando se pergunta qualquer coisa, há sempre duas respostas. Se não há, é porque perguntaste às pessoas erradas. Vê só um exemplo: porque é que as gentes do meu reino passam fome?
Pronto, bem sei, eu se passar é porque quero. Mas tu passas quer queiras quer não. Basta não chover este ano, o sol queimar ou o frio fazer cair a geada ou não sei o quê - o Rei não tem de perceber estas coisas mesquinhas, não é? - e pronto. Passas fome.
Há dias, em Sintra, na livraria do palácio entretive-me a estudar uns documentos do tempo do meu bisavô Manuel. Sabes que houve uma grande fome em Portugal, justamente quando ele se passeava com girafas e leopardos por Lisboa, numa carruagem folheada a oiro?
Quando da Mina e da Flandres vinham rios de oiro, o Tejo formigava de naus que traziam especiarias das Índias, o açúcar crescia na Madeira, nas cidades não havia pão.
E os mercadores reclamavam de El-Rei que os autorizasse a importar trigo e centeio, baratos, claro, para os vender caros cá dentro. E os concelhos reclamavam que o pouco que por cá crescia apodrecia nos celeiros porque ninguém lá o ia comprar...
Quem tinha razão, Luís Vaz? E para onde iam os rios de dinheiro que, diz-se nessas cartas, corriam para os nossos cofres?
Percebes porque tive de ir ao reino do Muley-Moluk ver com os meus próprios olhos porque abandonámos tantas praças e porque é que não podemos sustentar as que ainda temos?

4 comentários:

Anónimo disse...

Olá Tacci!
É com orgulho que lhe transmito o início da Tertúlia do Pirilampo em
http://tertulia-pirilampo.blogspot.com/
Espero que goste tanto como nós, e que possa participar também! Muito Obrigada! ;)

*beijinhos*
Cláudia

tacci disse...

Obrigado pelo convite. Vou já lá ver. Beijinhos para vocês.

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Viva Tacci!

Enorme é a nossa gratidão pelas suas presenças no "Atirei o Pau ao Gato" e em particular pela última que tão adequadamente deu início à conversa propriamente dita a respeito da despenaçização da interrupção voluntária da gravidez. Para além disso, agradecemos sempre este sítio prazenteiro onde nos confrontamos com um olhar sobre a nossa alma de portugueses enquanto povo que somos partilhando a herança de uma língua e uma cultura que tanto mundo ao mundo já acrescentou.
Neste texto, o Tacci fala-nos de um tempo crucial para quem queira reflectir sobre a nossa história no sentido de apurar o que nos tem separado do melhor que o lado certo da Terra tem nos nossos dias.
Longo tema para debate, na minha modesta opinião, um debate que arrastamos no tempo e que se transformou na tragédia de todos os portugueses que tenham um mínimo de consciência sobre o seu país.
Saúde Tacci, para si e todos os que lhe são queridos.

tacci disse...

Meu Caro "Atirou o Pau ao Gato":
Convidou-me e eu, como sou um discutidor impenitente, aceitei.
Agora tem de me aturar.
Um abraço e tudo de bom para si também.
A gente vai-se vendo.