segunda-feira, dezembro 18, 2006

"...intimidação cruel."









A fama, que pelas aldeias circunvizinhas apregoava o nome do missionário, atraíra imensa gente a escutar o sermão.
No fim de alguns minutos aparecia no púlpito a figura bem nutrida e pouco atrente do famigerado educador dos povos.
Fitou com sobranceria os ouvintes [...]
Enfim soltou o texto latino do sermão.
Seguiu-se nova pausa e principiou.
[...] As mais tétricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.
Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas ardentes, inúmeras torturas, a que o menor delito, tal como um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntária falta à missa, uma penitência esquecida, uma oração suprimida, arriscava as almas por toda a eternidade. Para cada pecado venial uma perspectiva de tormentos sem fim. o tribunal de Deus arvorado em tribunal do Santo Ofício, onde os autos de fé, os potros, e cavaletes aguardavam os delinquentes arrastados até ali; eis o resumo da oração. A fatal e desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu no pórtico do inferno, traçava-a este sobre os umbrais do tribunal do Eterno.
Na escultura do Cristo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto de um acusador, surgindo ali a pedir vingança, e não o do redentor sublime, a implorar e prometer perdão. E tudo isto de mistura com imprecações contra as modernas instituições sociais, contra a obra do século, contra os descobrimentos, contra a ciência, contra tudo em que se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e as ideias em sentido menos favorável à propaganda reaccionária.`
À medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; aumentava a desordem dos gestos e refinava a selvajaria das imagens.
Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditório, e principalmente da parte feminina dele, ia crescendo em choro manifesto, em gritos e alaridos. Cedo era já um angustioso clamor em toda a igreja.
Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais

2 comentários:

Gi disse...

Já há muitos anos que não releio Júlio Diniz mas Tacci, quando comecei a ler não acho que esta figura intimidante saia muito do "figurino" de alguns padres de aldeia que ainda mostram a figura de um Deus castigador e castrador. Quando a igreja se queixa do afastamento dos rebenhos, deve ter em atenção a conduta dos seus pastores. Mas isto é a conversa de alguém que deixou de acreditar em muita coisa há muito tempo, só tem o peso do que lhe quiserem dar.
Bom da Tacci - escusado será dizer que me perdi de amores com a figurinha :O)

tacci disse...

Também julgo que ainda os há, mesmo se têm de refrear os seus impulsos aqui e ali. Mas basta um referendo para reaparecerem a excomungar todos os adversários - que consideram inimigos.
Suponho que este tipo de fiéis, e alguns deles nem são padres, estou a lembrar-me da Titi Patrocínio (boa ideia, vou tentar desenhá-la), fazem mais pelo agnosticismo do que toda a propaganda que os ateus pudessem fazer. E claro, estou convencido que muito do anti-clericalismo português vem daí.
Mas, Gi, não é razão para deixarmos que matem os nossos mitos muito pessoais. Temos tanto direito a «inventar» uma religião para nosso próprio uso como qualquer outro de aceitar a que aceitou.
É um tema que dava pano para mangas e que me é muito querido.
Um abraço.