sexta-feira, julho 11, 2008

Mais vale cauda de merluccius...

1. Como é que chegámos aqui?

a) Lá em casa, quando éramos catrainhos, brincavam connosco porque não se devia dizer "pescadinha de rabo na boca", mas sim "de cauda nos lábios". Nós, claro, não ligávamos muito porque os exemplos que vinham de cima não eram sempre do mais edificante.
Mas íamos ouvindo a história do senhor que tratava a empregada por "serva", o pequeno almoço era o "repasto matinal", a barriga era "os interiores" e por aí fora. Porém, uns amigos levaram-no a ver uma Revista (à portuguesa, claro) e, quando voltou, imagine-se: as pernas passaram a ser "gambias", o apetite passou ser "larica", tudo coisas ordinaríssimas para a altura.
E a moral da fábula não podia faltar:
- Já vêem: quando nos esquecemos de ser bem educados...
Não percebemos demasiado bem o que acontecia, mas ficámos com a ideia de que, no mínimo, Deus, Pátria, Salazar e Família, não haviam de gostar. A educação é uma coisa terrívelmente relativa, pelos vistos.
b) Vem isto a propósito do recente debate sobre o Estado da Nação.
O Portugal, Caramba! avisa desde já: não tem qualquer competência para decidir se este Governo está no bom caminho ou no mau, se a Maddie foi morta ou raptada, se a Drª Manuela Ferreira Leite é bonita ou nem por isso, quantos corruptos se sentam nos lugares do poder.
É claro que não deixa de ter as opiniões que tem, umas melhor fundamentadas do que outras. Talvez não fosse descabido, até, declarar desde já os seus ódios de estimação - por exemplo, ao pobre do Cavaco Silva - e uma ou outra preferência, não venham depois dizer que.
Por tanto, para que conste, por aqui somos contra o TGV Lisboa-Porto, mas a favor de uma ligação de alta velocidade a Madrid e ao resto da Europa.
Somos contra o novo aeroporto seja onde fôr e preferíamos que não cortassem mais o que resta deste pobre país com auto-estradas, sobretudo quando o seu destino, adivinha-se, será a sucata dentro de uns vinte, trinta anos.
Somos contra as privatizações e a alienação do património, embora nos repugne que os Monumentos Nacionais - ou a treta que o substituiu - deixe cair a Igreja do Colégio dos Jesuítas a Campolide, por exemplo.
Não é, porém, destas coisas que queremos falar.

c) Do que queremos falar, verdadeiramente, é daquilo que muita gente se pergunta neste momento: dantes tínhamos um país reprimido, atrasado e em guerra. Agora somos, supostamente ao menos, uma democracia. E, olhando em redor, perguntamo-nos: como é que chegámos aqui?É claro que este "aqui", se desdobra: há um «aqui» mero estado de espírito, feito de descrença e desilusão. Acreditávamos, estávamos, como dizem os nossos irmãos, "muy ilusionados". Ou seja: tínhamos espectativas e julgávamos que eram realizáveis. Falamos por nós, e damos como testemunhas os programas dos partidos políticos de então, a constituição que deles resultou.

Queríamos superar o nosso analfabetismo, a nossa incultura. Queríamos acabar com a miséria. Queríamos que nenhum português mais se visse forçado a procurar "lá fora" as coisas que "cá dentro" não alcançava e a que queria ter direito. Coisas tão simples como uma casa que não fosse só um telheiro, de chão em terra batida; que tivesse tecto e uma casa de banho, electricidade, água canalizada, esgotos... Coisas tão simples como dinheiro para chamar o médico e aviar a receita na farmácia... Escolas para onde mandar os putos, a ver se tinham uma vida melhor do que a nossa.

Queríamos aquelas coisas que começávamos a ver na televisão: um carro e um fato, sofás para ver o futebol com os amigos enquanto bebíamos umas cervejas.

Queríamos desodorizantes, sabonetes e champôs. Queríamos que os nossos filhos bebessem leite e não só sopas de café.
Invejávamos os americanos - ou o que supunhamos que eles eram. Raros de nós queríam ser como os russos: não sabíamos nada do seu sistema educativo, mas víamos que os seus automóveis eram francamente maus.
E achávamos que também precisávamos de liberdade.
Éramos pequeninas rãs, mas queríamos ser maiores do que o boi.
d) Mas também há um «aqui» que é geográfico, por assim dizer. Estamos neste canto da península e nem sequer temos a sorte da Turquia que se espalha por dois continentes e, por isso, pode escolher entre a Europa e a Ásia. Escolheu, pelo menos até ver, a Europa. A seguir talvez venha o Líbano que se pode gabar de ter vários milhões de cristãos. E depois, quem sabe, Israel, que não me parece que tenha muitos.
Nós, ibéricos, temos um pézinho em África. Os nossos irmãos aqui ao lado têm Ceuta e cercanias; nós temos a (alegada) língua de Camões. Teríamos tido, como os turcos, a possibilidade de escolher.
Podíamos ter embarcado na Jangada de Pedra do Saramago e atracado em África. Já viram como era bom para a nossa auto-estima? Em vez de estarmos na cauda da Europa, podíamos estar vanguarda da África.
Em vez de rabo de pescada, éramos cabeça de sardinha.
Mas, vendo bem, se a cabeça fosse a do António Sardinha, também não era grande coisa.
Mas rabo? Ainda que de pescada? Francamente!

6 comentários:

Anónimo disse...

Como chegámos aqui? E só assim? Como se nos faltasse engenho e arte. Mas não creio que nos falte engenho e arte, falta-nos é senso. O que é engenho e arte? usar a ousadia com senso.

Anónimo disse...

O meu comentário está mal formulado (não sei apagar comentários). O que queria dizer é que a sensatez é conseguir no engenho e arte colocar ousadia sem que se dê passos maiores que os pés. De política percebo pouco, ou de partidos melhor dizendo, mas somos o que fazemos, e deixamos fazer, quotidianamente.

tacci disse...

Claro que nos falta engenho e arte, Gaivota. Temo-nos em alta conta, mas, no fundo, as nossas instituições são mais para o indigentezinho. Salva-nos um ou outro rasgo, que os poderes públicos - ou outros invejosos - se encarregam logo de calar (ou expatriar, pronto).
Abraços.

Anónimo disse...

o nosso ´mal é quando temos rasgos também qieremo retorno imediato e por isso não caminhamos. Coremos sem ter conta do que nos está no caninho(ar)

Graza disse...

Contra o TGV, aeroporto, auto-estradas, privatizações, qualquer coisa, não importa, mas que resulte! O problema é que não há quem dê garantias de nada, nada em Portugal é um projecto nacional que possa resultar se as condições previstas à partida não forem as mesmas à chegada, e é nisso que falhamos – os estádios de futebol são o exemplo mais à mão. Qualquer projecto deveria ser polivalente e servir sempre, independentemente das condições existentes à data da sua conclusão. Por muito que olhe só vejo três onde se pode quase jogar no escuro: Educação e Ensino, Justiça e Cultura.

Gostei desta: “Invejávamos os americanos - ou o que supunhamos que eles eram...”

tacci disse...

Concordo consigo, Grazza.
Se repararmos, desde o 25 de Abril, foram as coisas que melhor evoluíram (a par com a saúde e a habitação, talvez). Nunca houve tanta gente nas escolas, tantos grupos de teatro, tantos livros editados, tantas galerias e exposições. Não creio que baste a quantidade para gerar necessariamente a qualidade, mas decerto que muita coisa vai ficando. E creio que a nossa melhor aposta agora, em tempos ditos de crise, é mesmo a da qualidade do ensino. Mas eu, como professor a maior parte da minha vida, sou suspeito, claro.
Um abraço.