domingo, julho 29, 2007
Guerra do Silêncio
quinta-feira, julho 26, 2007
Homem ao Mar!
Gostam de livros?
Pois.
A mim, de pequenino, ensinaram-me a estimá-los.
No livro da terceira classe, ou um desses, vinha uma história, das edificantes, género alguém a perguntar:
‘Viveis sempre só, Senhor Petrarca?’
‘Só?’, respondia o poeta, ‘Vivo sempre rodeado de amigos.’
E, arredando uma cortina, mostrava uma fila de livros.
Eu não sabia quem era esse tal Petrarca, mas a reposta dele estava de acordo com os conselhos maternos.
A Senhora Minha Mãe era uma leitora impenitente. Já bastante velhinha ainda olhava em redor, via um livro em cima de uma mesa e perguntava: «Que tal é este livro?»
E zás, antes de saber a resposta ou sequer se alguém o estava a ler ainda, começava a sua paulatina leitura. Parava, de vez em quando, para fazer um comentário.
Já com os seus oitenta, ou perto disso, leu A Montanha Mágica pela primeira vez. Adorou reencontrar um mundo ainda próximo daquele que viveu na sua meninice, quando a doença romântica era a tuberculose porque levava os jovens e quando uma senhora de sessenta anos «era de muita idade». Quando os vícios ainda não se chamavam adicções: eram o vinho, o tabaco e, o mais desgraçado de todos, o jogo.
E toda a gente, desde sempre, fazia troça. Contavam-se histórias das suas distracções.
A mais célebre era a do arroz.
“Vergonha,” decretou um dia o Milôr Fernandes, “não é fazer embrulho de papel de jornal. Vergonha é ler o embrulho.”
A minha Mãe passou por essa vergonha.
Foi assim: antigamente, quando havia tempo para essas coisas, tirava-se do lume o arroz ainda com muito caldo e punha-se na arca, embrulhado em jornais, a enxugar.
À hora da refeição, estava soberbamente cozido e solto.
Um dia em que a mandaram buscar o arroz à arca, obedeceu prontamente, mas nunca mais voltou. Dá para adivinhar que foram dar com ela, muito quieta, ao pé da arca, a ler um folhetim no papel do embrulho.
Esta foi a mais importante das influências que eu sofri.
Mas houve outras.
A minha Avó era da firme opinião de que ler fazia mal. Como tantos outros vícios, só moderadamente se devia abusar. «Tanto leu que tresleu!», dizia-se e era verdade. E vinha o exemplo:
- Olha o Dr. Ferrer! Tinha tantos livros que tinha uma criada só para limpar o pó à biblioteca! E tanto leu que ficou assim! (gesto significativo de senilidade precoce ou irremissível demência)
Para a Senhora minha Avó, uma asserção universal provava-se, sem possibilidade de contradição, por um exemplo socialmente admissível. E não valia a pena contraditá-la usando o contra-exemplo: que uma andorinha não fazia o Verão, também era indiscutível.
Outras pessoas da família, ou não liam ou saltavam as partes mais aborrecidas. Imagino que A Montanha Mágica, com as suas mil e tal páginas, se lesse em hora e meia: os discursos do Sr. Setembrini, decididamente, não tinham interesse nenhum.
Para a minha Mãe, não.
Um livro começava-se pelo princípio e lia-se todo. Era uma espécie de cobardia abandoná-lo a meio, fosse qual fosse o pretexto. Era como se nos tivéssemos deixado derrotar por um livro, um adversário que devíamos transformar em amigo para toda a vida.
Imaginam o que ela sentiu quando leu o seu primeiro Mário Cláudio.
Ela que devorara a escrita enredada e experimental do Abelaira, a falta de pontuação do Saramago, ela que apenas franzira o nariz ao erotismo serôdio do Jorge Amado em Teresa Batista, cansada de guerra e nem pestanejara com A obra completa de Sally Mara, do Quenaud, sentiu-se soçobrar perante o prosador do Norte.
Quando lhe confessámos que tínhamos tido as mesmas dificuldades, suspirou de alívio.
- Eu sei que estou a ficar velha - explicou-nos. – Mas, mesmo assim…
Por respeito pelo Mário Cláudio, não adiantou a conversa.
Não sei se tudo isto explica porque é que tenho a casa devorada pelos livros. Sei que o livro ainda é pior do que os priões da BSE. Fica a incubar anos e anos e, de repente, quando temos de mudar de casa ou tão só renovar a mobília, parece explodir: o nosso cérebro transformado em esponja mostra-se incapaz de dominar a situação.
Lembram-se do Patinhas a nadar na caixa-forte? É como nós nas bibliotecas. Mas o quaqualionário não se afundava, enquanto nós estamos quase a perder o pé. Estamos quase, quase, a morrer afogados em livros.
Rezem-nos pelas nossas almas, sim?
quinta-feira, julho 19, 2007
O Cão que jogava xadrez
O Cão que jogava xadrez XVIII
Mas a ideia de que «tudo aquilo» pudesse ser «treta para tótós», como o Pai Natal e o Menino Jesús a dar prendas aos betinhos, ficou a trabalhar-lhe lá dentro. Ná! O Zé Nesgas havia de ter alguma razão, senão era ele, Carlinhos, quem havia de ter ganho uma bicicleta pelos anos e não o mongas do Hugo Vinhas que só tinha negativas.
Uma coisa, porém, e as minhas Gentis Leitoras certamente já pensaram nisso, é duvidar um tanto dos deuses, admitir que este mundo pode ser assim, como que um simples jogo de forças cegas, indiferentes à justiça e ao bem.
Outra, cem vezes mais difícil, é ter umas réstias de crença, dar de caras com um deus ao vivo e perceber que ele aceita o mal com o mesmo destempero da Stora de Inglês que não tem mão na malta e, zás, marca faltas de castigo a torto e a direito. Isso é que é lixado.
Claro que a minha Senhorinha, as gentis Damas e os garbosos Cavaleiros que me lêem agastados com tanta heresia, se estão neste momento a interrogar: «Que terá toda esta conversa a ver com o que aconteceu ao Carlinhos e à Magrizela?» Mesmo compreendendo a vossa impaciência e sem querer eu, pobre demente, causar mais escândalo do que aquele que para aqui me trouxe e já não foi pouco, é necessário que vos explique o estado de espírito de um tímido jovem que ia só à procura de um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado para não largar pelos nas alcatifas. E que obteve ele? Uma cadela velha que não jogava coisa nenhuma?
E seria assim mesmo, sempre, que as coisas se passavam lá no Canil?
Enquanto seguia, cabisbaixo, pelas ruas afora, a Magrizela resignada à corda atrás dele, começava a pensar que nada daquilo tinha sido verdade.
- Sonhei - concluiu ele. - Ou então foi uma daquelas pedradas que a Stor Padre falou, que dão estas merdas: a gente fica marado e julga coisas. Aquele deus, Anubis ou lá o que era, não pode existir, foi o que disse a Sónia na catequese. Há um só Deus que governa no Céu e na Terra e que não me deu a bicicleta porque... pronto, não sei porquê, mas o Vinhas havia de merecer mais do que eu...
Ia assim concentrado, entretido no seu processo de denegação, e nem ouviu a Magrizela, lá atrás, a dizer «olha que giro! Sou capaz de andar como tu!» Foi só ao virar da esquina, já perto de casa, que se deparou com os matulões, da Alfredo Arroja de certeza, a barrar o caminho. Pareciam mais embaraçados do que agressivos.
- Que é que tu trazes aí, ó puto? - quase gaguejava um deles.
O Carlinhos tirou vantagem da situação e respondeu, no tom mais agreste que conseguiu:
- É um cão, não se vê?
Mas, ao dizer isto e enquanto um dos parvalhões da Alfredo Arroja se rebolava em gargalhadas alarves, «um cão, fosga-se, ouviste, o puto diz que é um cão», virou-se para apontar a Magrizela e o queixo caiu-lhe até ao peito.
Na ponta do cordão, com a coleira ao pescoço, estava uma chavalita, nuínha como tinha vindo ao mundo, bonitinha e sorridente.
- Tás a ver como eu consigo andar nas patas de trás como tu? - dizia ela.
O que aconteceu a seguir, se me escapar amanhã à noite, vou tentar contá-lo, por muito incrível que pareça. Basta dizer que o Deus-dos-Cães voltou a aparecer, empoleirado em cima de uma velha camioneta à beira do passeio, para as minhas gentis Leitoras terem uma ideia do estranho que tudo aquilo foi, para mais em pleno coração do populoso bairro.
domingo, julho 08, 2007
Diz o quê?
quarta-feira, julho 04, 2007
O Cão que jogava xadrez XVII
Mas o Deus-dos-Cães já se erguia, pronto para a batalha.
segunda-feira, julho 02, 2007
O Cão que jogava xadrez XVI
Mas vim. Acabei por vir, após voltas e reviravoltas no estreito catre, mais estreito ainda por ocultar todo o meu tesouro nesta enfermaria de loucos de que faço parte e em que diariamente a minha personalidade se dissolve.