domingo, julho 29, 2007

Guerra do Silêncio

Margarida Calafate Ribeiro, África no Feminino, As mulheres portuguesas e a guerra colonial, Porto, Afrontamento, 2007
É uma recolha de depoimentos de mulheres que acompanharam os seus maridos nas mobilizações para as colónias, Angola, Guiné e Moçambique sobretudo. Esposas de soldados, portanto, militares de carreira e oficiais na sua maioria.
Pode ser uma limitação deste trabalho de Margarida Calafate Ribeiro. Ou talvez não. Poderíamos ter sido informados de quais os critérios da recolha e, já agora, dos critérios de transcrição. São depoimentos orais, gravados e trancritos? São depoimentos escritos? Como foram escolhidas estas mulheres para participarem nesta compilação? Que problemas lhe suscitou o método adoptado? Viu-se obrigada a rever a metodologia?
Enfim, Margarida C. Ribeiro não nos diz e é pena. Seria um livro completo. Assim é apenas muito interessante, se "apenas" se aplicar a um caso destes.
Com a devida vénia, transcrevo uns pedacinhos, quase ao acaso, para dar uma amostra daquilo que pareceu mais importante. Mas é melhor ler o livro todo, claro.
Depoimento IV:
"Disse-lhe: «Já viu? Morreu um homem e as pessoas fizeram a festa e fizeram o baile?!», e ele respondeu-me: «Em que planeta é que você está? Em que planeta é que você está? Já leu hoje o jornal? Já leu hoje o jornal?» Eu respondi: «Li». E ele disse-me: «Alguma vez, desde que chegou aqui a Angola, viu alguma notícia de guerra no jornal? Alguma vez ouviu falar de guerra?!", «Esta gente...» - não estava lá mais ninguém, estávamos os dois sozinhos - «... esta gente alguma vez fala da guerra?! Para eles a guerra existe?! A guerra não existe, não percebeu?». (pag. 93)
Depoimento III:
"Na rua onde eu morava havia o comando da polícia uns metros abaixo. Parecia uma polícia normal, mas o que é certo é que se ouviam os gritos. Eu lembro-me de diariamente, durante a noite, haver gritos lancinantes! Era impossível não ouvir, mas ninguém falava nisso, ninguém sequer comentava aquelas noites rasgadas de gritos." (pag. 76)
"O regresso não foi, portanto, brilhante. Perante todas as convulsões e confrontado com determinadas situações, o meu marido recomeçou a ter medo e recomeçou a beber. Lembro-me de ele começar a beber de manhã, por volta das dez horas, e tornou-se extremamente agressivo. Começou a maltratar sobretudo o filho que sempre rejeitou e a mim. E a partir de 78-79, 80-81, até 84, foi a pior guerra que eu vivi." (pag. 81)
Depoimento XVI:
"Para todos nós, acho que esse tempo africano é um tempo de saudade e foi muito importante estarmos sempre juntos. Na altura, os meus filhos não se aperceberam da guerra, do que era a guerra, porque a guerra não se sentia no nosso dia-a-dia."

quinta-feira, julho 26, 2007

Homem ao Mar!

Livros!
Gostam de livros?
Pois.
A mim, de pequenino, ensinaram-me a estimá-los.
No livro da terceira classe, ou um desses, vinha uma história, das edificantes, género alguém a perguntar:
‘Viveis sempre só, Senhor Petrarca?’
‘Só?’, respondia o poeta, ‘Vivo sempre rodeado de amigos.’
E, arredando uma cortina, mostrava uma fila de livros.
Eu não sabia quem era esse tal Petrarca, mas a reposta dele estava de acordo com os conselhos maternos.
A Senhora Minha Mãe era uma leitora impenitente. Já bastante velhinha ainda olhava em redor, via um livro em cima de uma mesa e perguntava: «Que tal é este livro?»
E zás, antes de saber a resposta ou sequer se alguém o estava a ler ainda, começava a sua paulatina leitura. Parava, de vez em quando, para fazer um comentário.
Já com os seus oitenta, ou perto disso, leu A Montanha Mágica pela primeira vez. Adorou reencontrar um mundo ainda próximo daquele que viveu na sua meninice, quando a doença romântica era a tuberculose porque levava os jovens e quando uma senhora de sessenta anos «era de muita idade». Quando os vícios ainda não se chamavam adicções: eram o vinho, o tabaco e, o mais desgraçado de todos, o jogo.
E toda a gente, desde sempre, fazia troça. Contavam-se histórias das suas distracções.
A mais célebre era a do arroz.
“Vergonha,” decretou um dia o Milôr Fernandes, “não é fazer embrulho de papel de jornal. Vergonha é ler o embrulho.”
A minha Mãe passou por essa vergonha.
Foi assim: antigamente, quando havia tempo para essas coisas, tirava-se do lume o arroz ainda com muito caldo e punha-se na arca, embrulhado em jornais, a enxugar.
À hora da refeição, estava soberbamente cozido e solto.
Um dia em que a mandaram buscar o arroz à arca, obedeceu prontamente, mas nunca mais voltou. Dá para adivinhar que foram dar com ela, muito quieta, ao pé da arca, a ler um folhetim no papel do embrulho.
Esta foi a mais importante das influências que eu sofri.
Mas houve outras.
A minha Avó era da firme opinião de que ler fazia mal. Como tantos outros vícios, só moderadamente se devia abusar. «Tanto leu que tresleu!», dizia-se e era verdade. E vinha o exemplo:
- Olha o Dr. Ferrer! Tinha tantos livros que tinha uma criada só para limpar o pó à biblioteca! E tanto leu que ficou assim! (gesto significativo de senilidade precoce ou irremissível demência)
Para a Senhora minha Avó, uma asserção universal provava-se, sem possibilidade de contradição, por um exemplo socialmente admissível. E não valia a pena contraditá-la usando o contra-exemplo: que uma andorinha não fazia o Verão, também era indiscutível.
Outras pessoas da família, ou não liam ou saltavam as partes mais aborrecidas. Imagino que A Montanha Mágica, com as suas mil e tal páginas, se lesse em hora e meia: os discursos do Sr. Setembrini, decididamente, não tinham interesse nenhum.
Para a minha Mãe, não.
Um livro começava-se pelo princípio e lia-se todo. Era uma espécie de cobardia abandoná-lo a meio, fosse qual fosse o pretexto. Era como se nos tivéssemos deixado derrotar por um livro, um adversário que devíamos transformar em amigo para toda a vida.
Imaginam o que ela sentiu quando leu o seu primeiro Mário Cláudio.
Ela que devorara a escrita enredada e experimental do Abelaira, a falta de pontuação do Saramago, ela que apenas franzira o nariz ao erotismo serôdio do Jorge Amado em Teresa Batista, cansada de guerra e nem pestanejara com A obra completa de Sally Mara, do Quenaud, sentiu-se soçobrar perante o prosador do Norte.
Quando lhe confessámos que tínhamos tido as mesmas dificuldades, suspirou de alívio.
- Eu sei que estou a ficar velha - explicou-nos. – Mas, mesmo assim…
Por respeito pelo Mário Cláudio, não adiantou a conversa.
Não sei se tudo isto explica porque é que tenho a casa devorada pelos livros. Sei que o livro ainda é pior do que os priões da BSE. Fica a incubar anos e anos e, de repente, quando temos de mudar de casa ou tão só renovar a mobília, parece explodir: o nosso cérebro transformado em esponja mostra-se incapaz de dominar a situação.
Lembram-se do Patinhas a nadar na caixa-forte? É como nós nas bibliotecas. Mas o quaqualionário não se afundava, enquanto nós estamos quase a perder o pé. Estamos quase, quase, a morrer afogados em livros.
Rezem-nos pelas nossas almas, sim?

quinta-feira, julho 19, 2007

O Cão que jogava xadrez

AVISO:
Não se sabe por que bulas, o Blogger entendeu que o XVIII episódio da Saga do Carlinhos e da Magrizela, já fora do Canil Municipal, ficava melhor lá mais abaixo.
Em querendo localizá-lo, é melhor clicar aqui ao lado.
Que se há-de fazer?
Impõe-se a resignação.
PS: Graças à Ana, que deu as necessárias dicas, o episódio tresmalhado voltou para o seu lugar, como era devido. Ainda dizem que vivemos num mundo sem solidariedade e que é cada um por si. O «Portugal, Caramba!» tem muita honra em vir aqui, publicamente, desmentir essas atoardas e, se permitem o neologismo, agradecer à «dicadora».
Bem-haja.

O Cão que jogava xadrez XVIII

Lembra-se a minha Senhorinha de que o seu Primo Carlinhos tinha ficado muito chocado com as declarações do Deus-dos-Cães - que a si mesmo chamava Anubis?

Pois ficou e nem admira, mesmo sabendo nós que a educação intransigentemente católica da sua excelente Tia já tinha sido um tanto moderada por algumas dúvidas bastante substantivas.

A culpa, diga-se, foi do inevitável Zé Nesgas que lhe disse sardónico quando o viu a sair da missa: «Ina man, porra! Também acreditas no Pai Natal?»

É claro que o seu Primo ficou danado e correu atrás do Zé Nesgas para lhe bater (ainda não eram amigos do peito). Tinha a vantagem das pernas mais compridas, mas, como perdia e muito no peso, em breve se esfalfaram ambos e sentaram-se, meio reconciliados, a ganhar fôlego.

«E tu», perguntou o Carlinhos, a romper o silêncio rancoroso, «tu não queres ir para o Céu?»

O Zé ainda gozou aquelas coisas do costume que todos ouvimos em miúdos, que não conhecia lá ninguém e que era só pobres de espírito a cavalo nas núvens. Mas depois, um bocadinho mais a sério, explicou que o Pai nunca lhe tinha ensinado essas coisas e que lá em casa só a Avó é que ia à missa, mas ele, Zé Nesgas, não ia à bola com «essas tretas para tótós».

E, como já tinham descansado, o seu Primo zangou-se outra vez e, claro, nova correria. Quando um gritou «chimpas» para atar um sapato esqueceram-se do assunto que, tem de se dizer, na altura não parecia merecer grande reflexão. Na pubredade as coisas são assim.

Mas a ideia de que «tudo aquilo» pudesse ser «treta para tótós», como o Pai Natal e o Menino Jesús a dar prendas aos betinhos, ficou a trabalhar-lhe lá dentro. Ná! O Zé Nesgas havia de ter alguma razão, senão era ele, Carlinhos, quem havia de ter ganho uma bicicleta pelos anos e não o mongas do Hugo Vinhas que só tinha negativas.
Uma coisa, porém, e as minhas Gentis Leitoras certamente já pensaram nisso, é duvidar um tanto dos deuses, admitir que este mundo pode ser assim, como que um simples jogo de forças cegas, indiferentes à justiça e ao bem.

Outra, cem vezes mais difícil, é ter umas réstias de crença, dar de caras com um deus ao vivo e perceber que ele aceita o mal com o mesmo destempero da Stora de Inglês que não tem mão na malta e, zás, marca faltas de castigo a torto e a direito. Isso é que é lixado.

Claro que a minha Senhorinha, as gentis Damas e os garbosos Cavaleiros que me lêem agastados com tanta heresia, se estão neste momento a interrogar: «Que terá toda esta conversa a ver com o que aconteceu ao Carlinhos e à Magrizela?» Mesmo compreendendo a vossa impaciência e sem querer eu, pobre demente, causar mais escândalo do que aquele que para aqui me trouxe e já não foi pouco, é necessário que vos explique o estado de espírito de um tímido jovem que ia só à procura de um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado para não largar pelos nas alcatifas. E que obteve ele? Uma cadela velha que não jogava coisa nenhuma?

E seria assim mesmo, sempre, que as coisas se passavam lá no Canil?

Enquanto seguia, cabisbaixo, pelas ruas afora, a Magrizela resignada à corda atrás dele, começava a pensar que nada daquilo tinha sido verdade.

- Sonhei - concluiu ele. - Ou então foi uma daquelas pedradas que a Stor Padre falou, que dão estas merdas: a gente fica marado e julga coisas. Aquele deus, Anubis ou lá o que era, não pode existir, foi o que disse a Sónia na catequese. Há um só Deus que governa no Céu e na Terra e que não me deu a bicicleta porque... pronto, não sei porquê, mas o Vinhas havia de merecer mais do que eu...

Ia assim concentrado, entretido no seu processo de denegação, e nem ouviu a Magrizela, lá atrás, a dizer «olha que giro! Sou capaz de andar como tu!» Foi só ao virar da esquina, já perto de casa, que se deparou com os matulões, da Alfredo Arroja de certeza, a barrar o caminho. Pareciam mais embaraçados do que agressivos.

- Que é que tu trazes aí, ó puto? - quase gaguejava um deles.

O Carlinhos tirou vantagem da situação e respondeu, no tom mais agreste que conseguiu:

- É um cão, não se vê?
Mas, ao dizer isto e enquanto um dos parvalhões da Alfredo Arroja se rebolava em gargalhadas alarves, «um cão, fosga-se, ouviste, o puto diz que é um cão», virou-se para apontar a Magrizela e o queixo caiu-lhe até ao peito.

Na ponta do cordão, com a coleira ao pescoço, estava uma chavalita, nuínha como tinha vindo ao mundo, bonitinha e sorridente.

- Tás a ver como eu consigo andar nas patas de trás como tu? - dizia ela.


O que aconteceu a seguir, se me escapar amanhã à noite, vou tentar contá-lo, por muito incrível que pareça. Basta dizer que o Deus-dos-Cães voltou a aparecer, empoleirado em cima de uma velha camioneta à beira do passeio, para as minhas gentis Leitoras terem uma ideia do estranho que tudo aquilo foi, para mais em pleno coração do populoso bairro.

domingo, julho 08, 2007

Diz o quê?

A gente aqui não conhece o Senhor António Balbino Caldeira, do Portugal Profundo. E ele, a nós, ainda menos.
Dizem que, se um tal José Sócrates de Sousa não chegou a ser engenheiro, a ele o deve. Mas, mal-agradecidamente, em vez de ficar contente, não: processou-o. Pessoalmente, se pessoalmente contamos alguma coisa - e até hoje não se viu - a gente acha que não foi a melhor opção. Se amor com amor se paga, nos blogues é a mesma coisa. O Senhor José, se tinha alguma coisa a dizer, bem-educadamente chamava um dos seus secretários e dizia-lhe:
- Pá! Faz aí um blogue para responder a esse paínço.
Mas, a vida tem destas coisas. Em vez desta atitude razoável, resolveu apresentar queixa, a gente não sabe em que balcão: «aquele menino é mau, usou a Net, que é o meio de comunicação mais universal e portanto não serve para isso, para denegrir na minha reputação...»
- Qual, qual? - perguntámos nós, ansiosos e perturbados.
O caso não era para menos: na nossa santa ignorância, lorpa e iletrada, não déramos conta de que ele tivesse uma, a menos que fosse a de ser Primeiro Ministro não sei de onde. Mas isso não acreditamos, nem nós, nem ninguém. Nem o mongas do Quim Gordo que quis ser palhaço, carroceiro, princês, treinador de elefantes e acabou varredor da câmara, alguma vez lhe passou pela cabeça que se pudesse ser tal coisa.
Debruçámo-nos atentos sobre a blogaria.
Éramos uma roda de compadres, todos na casa do povo, à volta do portátil, com o wireless, como eles dizem e que quer dizer que tem arame a menos, e percebemos.
O Senhor Pinto de Sousa, que também assina como Engº José Sócrates, Primeiro Ministro enquanto tal e cidadão...
Olhámos uns para os outros.
Cidadão, cidadões, enfim, éramos todos, excepto o Quim Mongas que não era nada porque já tinha bebido um par de canecas e ressonava que nem um porco, e o Václáv, que, lá por saber umas coisas de computadores, não julgasse que era gente.
Primeiro Ministro é que era o diabo. Não sabíamos o que isso era há tantos anos, um tinha querido continuar a ser e por causa do tabu, outro casou-se e foi para os refugiados, outro ainda teve mais gosto, parece que Bruxelas, enfim, o Filipe da Carlota esteve lá a trabalhar no batiment como plombier e sabe como é, «gajas é o que se quiser, nem é preciso ter dinheiro, leva-zas todas a comer uma de moules et des frites, pás! Tá no papo!»
«Mas podia ser perigoso, lá isso...» «O quê, o papo?» «Não, porra, isso de primeiro ministro.»
- Mas a gente não diz nada?
- E aquele desenho?
Podia ser o desenho. Não dizia muito, mas era solidário, lá isso...
Mas havia dúvidas: solidário, sim, mas com quê?
- Com quê? T'ézés parvo. Então não se vê que é com a censura na Net?
- E então eu agora sou solidário com isso?
As dúvidas agravavam-se.
- Pronto. Telefona-se ao advogado.
Era uma ideia. Toda a minha gente rapou dos telemóveis e desatámos a gritar. Foi preciso o Canina impor-se: «Porra, pá! Chiça! Eu é que falo!»
Vieram mais umas imperiais enquanto ele tentava explicar. O pobre do advogado, mal dele que era um gajo porreiro, perguntou, do outro lado se a gente sabia que horas eram.
É que ele tinha um julgamento em Beja às nove horas e tinha de se levantar às seis...
Ninguém queria saber. A solidariedade é que era importante, o Canina tentou explicar ajudado pelos que ainda não tinham sossobrado, mas, é claro, de um lado só ouvíamos metade, do outro também, de modo que o Canina berrava de cá: «Diz o quê?»
E a gente a apoiá-lo, claro, que é que a gente havia de dizer que não tivesse ainda dito?
- Diz claimer, pá? Ó pá, mas eu não sei dizer essas merdas, pá, isso é estrangeiro ou quê?
Lá chegámos a acordo, a malta desconfia que foi só porque o advogado o que queria era ir dormir.
Então era assim: a gente publicava o desenho do tal Sócrates a puxar as orelhas ao Tacci, mas dizia que não era nossa a responsabilidade.
- Tá bem, pronto. - disse o Marrafas, já a querer ir-se embora. - Mas, se não é nossa, é de quem?
Era um problema. Julgam que a gente ficou agradecida ao Marrafas?
Nem pó.
Com o Jacinto a querer fechar a tasca, o melhor era adiar as questões ingentes e abalar até às nossas esposas amantíssimas que nos aguardavam pacientes, na frescura dos nossos lençois, se não tivesse lá chegado outro primeiro.

quarta-feira, julho 04, 2007

O Cão que jogava xadrez XVII

Anúbis, o Deus-dos-Cães, ou se as minhas gentis Leitoras preferirem, o Deus-Chacal, tinha prometido resolver o problema do Carlinhos e que era, se se lembram, arranjar um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado para não largar pelos nas alcatifas.
Porém, mesmo tendo o olhar do artista que transforma e subverte o real - e por isso, aliás, tinha de usar aquela horrorosa e sebenta pala preta inibidora dos raios criativos, sim, mas incorrectíssimos do ponto de vista das políticas vigentes no Olimpo - não teve tempo de o usar.
Ou porque tinha levado uma pancada enorme na sua divina cabeça, ou porque as coisas são mesmo assim, mal levantou a pala do olho cego para realizar o milagre e já um vigoroso estrondo anunciava o despertar do desmaiado Guarda.
Não desejo, longe de mim, que a minha Senhorinha se ponha na situação de um Todo-Poderoso Guarda que acorda com um enorme galo na testa, o joelho sangrando devido à tábua com pregos do seu Primo Carlinhos, e, ainda por cima, as mãos e pés atados com arames.
O rugido de desespero foi tal que abalou as sólidas paredes de pedra e tijolo do centenário edifício.
Como, mas como?
Como podia ser assim contestada uma gestão de dois anos que reduzira a despeza do Canil em 18%, mesmo se, por causa do investimento e das despesas extraordinárias com os cartões de crédito da Gerência, o déficit de exercício aumentara uns ligeiros 34 pontos percentuais?
A sua fúria foi horrenda e temerosa.
Os arames resistiram a um primeiro puxão, mas ao segundo rebentaram e um coro de alarme ergueu-se entre os cães que, fechados ainda nas suas gaiolas, não tinham podido escapar.
Os próprios Diabretes se precipitaram, «ó da Guarda, ó da Guarda» esquecendo-se, claro, de que quem assim os assustava era o próprio Guarda.
Mas o Deus-dos-Cães já se erguia, pronto para a batalha.
- Vocês, ó bardajolas! Toca a pirar que isto agora vai ser a sério.
- Pirar para onde? - perguntou, não sem um certo sentido das oportunidades, o seu Primo Carlinhos.
Enquanto preparava o morteiro de 85, o Deus-dos-Cães, irritado, proferiu um ror de palavras que, pelo sua conotação, as minhas gentis Leitoras me dispensarão de repetir.
- Desapareçam, fosga-se! - acrescentou ele. - Tu e essa cadela sarnenta.
Uma bomba saiu do cano do morteiro e foi explodir contra a porta do matadouro, rebentando a parede, uma das vigas do tecto e fazendo cair uma infinidade de telhas. E logo outra granada, disparada pelo buraco recém aberto, ia direita ao telhado e rebentava pouco depois com uma chuva de cacos de telha, tijolo e raspas de madeira.
Anúbis, com um sorriso de orelha a orelha, acolitado pelos Diabretes que acorriam armados até aos dentes, bombardeava alegremenbte a sala onde, encolhidos nas suas gaiolas, cães, gatos e outros bichos mais ou menos inocentes se tentavam abrigar.
- Corre, - gritou a Magrizela.
E correram. As paredes ruiam, o telhado desmoronava-se, cães uivavam e Pitbuxos com cimitarras nos dentes e crisses malaios à cintura começavam a invadir a cozinha.
A Magrizela e o seu Primo Carlinhos escaparam-se por entre os destroços, uma granada que rebentou demasiado próximo - mesmo que fosse do outro lado do planeta ainda seria demasiado - deixou-os atordoados por um momento. Mas, felizmente, ali estava uma porta, daquelas de ferro que precisam de muito óleo e, volta e meia, nos entalam os dedos, mas que escolha havia?
A cadela Magrizela e o seu Primo Carlinhos precipitaram-se pela fenda entreaberta e logo a porta se fechou com um estrondo metálico e um bem-aventurado silêncio se fez.
- Então, - disse uma voz amigável. - Encontraste o teu cão, pelo que estamos a ver...
O Carlinhos olhou para cima e avistou as longas pernas e os jeans estreitinhos da garina que o tinha recebido à entrada. Estava corada e parecia feliz; respirava com força como se viver fosse uma agradável surpresa.
O Carlinhos achou-a mais bonita e, até, talvez, mais simpática.
- Não achas que é um bocado velhote para tu o levares? - perguntava entretanto a garina com a cabecinha loira um pouco inclinada. - O costume é vocês levarem um cachorrinho, sabes? São fáceis de educar, a tua mãe havia de gostar mais.
- Muito obrigado. Esta mesma aqui é que é, se puder ser.
- Então, tu é que sabes. Levas aqui o certificado e, não te esqueças: tens só quinze dias para o devolver se não se derem bem.
- Possas, a chavala é parva! - rosnou a Magrizela.
Mas, felizmente, a garina não entendeu:
- Ah, é uma cadela, e velha, ainda por cima... - disse ela. - Pronto. Aqui tens. Levas este cordão a fazer de trela, sabes, estes cães já não estão habituados a andar por aí, e além disso é a lei, ninguém cumpre, mas é o que diz a lei...
O Carlinhos despediu-se e antes de transpor o grande portão que o conduzia à rua, olhou em redor.
Nada indicava que a guerra continuasse lá no interior: o Carlinhos olhou para a Magrizela, achou-a uma velhota e perguntou a si mesmo se tinha sonhado com aquilo tudo.
- Bora daqui, - rosnou a cadela, ansiosa e mal-humorada.
E puxou pelo cordão até quase desiquilibrar o Carlinhos.
- Não é por aí - gritou ele. - É por este lado...
- Não grites, que eu não sou surda. É por esse lado porquê?
- Porque é a nossa casa. Vais tomar um banho e depois arranjo-te qualquer coisa para comeres...
- Um banho? Blheaac! Não podemos ir para qualquer outro lado?
- Não. Já estou com fome e, além disso, tenho de ir à casa-de-banho, tázaver? Já estou um bocado à rasca.
- Então? Qual é? Não tens aí árvores que bastem?
O seu Primo, Senhorinha, não soube o que responder. É que, pensava ele, mesmo se por palavras mais cruas, «como hei-de ensinar o que é pudor a uma cadela de catorze anos?»
E, se a minha Senhorinha, as nobres Damas e os bravos Cavaleiros o permitirem, como por hoje já estou cansado, deixaremos esta relevante questão para uma próxima vez em que eu me consiga esgueirar até aqui.
Pode ser?

segunda-feira, julho 02, 2007

O Cão que jogava xadrez XVI

Pois, Gentil Senhorinha.
Tinha jurado não mais voltar a este computador, nem de dia, quanto mais pela calada da noite. Tinha dito a mim próprio que devo aceitar a minha própria cobardia, os meus medos e não mais arrostar com os terrores de uma escuridão em que a lanterna cria um estreito cone de luz deixando como que em negativo toda uma zona incerta de onde as mais horríveis abominações nos espreitam.
Mas vim. Acabei por vir, após voltas e reviravoltas no estreito catre, mais estreito ainda por ocultar todo o meu tesouro nesta enfermaria de loucos de que faço parte e em que diariamente a minha personalidade se dissolve.
Nesta camarata, enfermaria, sala de exposições aberrantes, que me resta nas longas noites?
E não resisti ao apelo deste ecrã fracamente iluminado. Não resisti a falar um momento mais com a minha Senhorinha, nem me resignei a abandonar o seu Primo Carlinhos que, como talvez não recorde, tinha ido ao Canil Municipal, SA - ou EP, ou uma sigla dessas cujo significado não abranjo - para arranjar um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado porque a Mãe (a sua estimável Tia), com a mania das limpezas, jamais consentiria no menor pelo na carpete.

Ora, porém, a dificuldade está realmente aí: ser aspirado, gentilmente, como a sua Tia não deixaria de fazer, era o menos.
Jogar xadrez é que era mais complicado.
Não, como as benévolas Leitoras e os Cavaleiros que as acompanham talvez tenham pensado, por inferioridade do córtex cerebral ou por falta de um polegar oponível com que mover as pedras no tabuleiro. Não, os cães, como explicou a Magrizela mais tarde, jogam jogos muito complexos como, se a minha Senhorinha me perdoa a expressão que para eles é naturalíssima, o «Cheira aqui que eu cá mijei» ou o «Mija bem, quem quem?».
Este último jogo, sobretudo, merecia uma análise mais completa do que a que eu estou habilitado a fazer.
A minha Senhorinha já reparou certamente que os cães, ao contrário de nós, não vivem num mundo instantâneo. O sentido dominante nestes nossos amigos, sendo o olfato, permite-lhes «ver» um pessoa, por exemplo, um pouco antes e até muito depois de ela passar. Nós primatas, mantemos na nossa retina, as imagens poucas centésimas de segundo. A nossa amada, para os felizes que a têm, desaparece da nossa vista mal dobra a esquina.
Para o nosso cão, ela está ainda ali, e estará por tanto tempo quanto as moléculas do seu odor se não dissiparem por completo, o que pode demorar dias. Ou então, como para nós se vê mal em dias de nevoeiro, também para eles há dias em que os cheiros se misturam e se confundem como o templo e a taberna do Fradique Mendes.

Mas vejo, Senhorinha, que a estou a impacientar.
O que eu queria dizer é que os cães realmente bons nestes complexos jogos, escolhem estes dias de nevoeiro olfactivo para os seus campeonatos de «Mija bem, quem, quem?» E o vencedor, por vezes um rafeirote como a Magrizela ou um bassêzeco de rodas baixas, ganha no bairro um prestígio que nada na sua falta de elegãncia e dotes concursáveis faria prever.
Mas xadrêz, não. Como comer uma peça e deixar de contar com ela se o seu cheiro, a sua essência, no fundo, permanece em jogo?
Por isso, Anofis, o Deus Chacal resolveu que tinha de compensar o seu primo Carlinhos de algum modo.
Como o fez, isso, Senhorinha, receio só conseguir dizê-lo mais e depois.