sexta-feira, dezembro 29, 2006

Alcaïns - 3

O Sr. Padre Novo, que não era nada tolo, apercebeu-se rapidamente de que a religiosidade, por não seguir sempre o canon de Roma - nem, por vezes, o bom senso - não deixa de ser religiosidade, profunda e sentida. A tradição de intolerância foi mais forte. Deixou de se opor. Mas foi incapaz de participar.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Alcaïns - 2

A vida na Beira Interior foi sempre muito dura. Contam as pessoas mais antigas que, muitas vezes, o jantar era uma malga de feijão pequeno (o feijão frade), com um fio de azeite -se havia. E uma bucha de pão para levar para o trabalho. Ou para a escola. A professora batia. Com a régua, nas mãos inchadas pelas frieiras e geladas do frio.
Até ao surto da emigração, nos anos sessenta e setenta, passava-se fome. E no Inverno, muito, muito frio, nas casas de telha vã e chão de pedra.
Era assim, contam ainda.

Alcaïns - 1


Já lá vão alguns anos.
Havia, é claro, um padre novo na paróquia, que com ser novo também nos anos, quis modernizar os hábitos. Talvez por achar mórbida a tradição, decidiu que a capela mortuária fecharia à meia-noite. No dia seguinte, logo pela manhã, abria-se de novo, o velório dos falecidos continuaria depois de todos terem descansado.
Que tal foste fazer:
À primeira tentativa de impedir que o velório durasse a noite toda, como é devido, as senhoras ergueram o estandarte da revolta. Um grupinho de gente antiga decidiu postar-se na capela. E ai de quem as fosse de lá tirar.
Como não ficava bem à família deixar que o falecido fosse velado apenas pelo grupo, fiquei lá eu também a fazer companhia. Éramos seis, cinco senhoras e eu.
Não sei se os mortos nos podem ouvir, lá do sítio para onde migram as almas. O que sei é que toda a noite se contaram histórias, umas do volfrâmio, outras de padres, as senhoras picaram-se umas às outras e riram-se. O falecido, que era um bom conversador, havia de ter gostado de participar.
Consegui depois, de memória, desenhar quatro das minhas cinco companheiras. A quinta que me perdoe por não figurar aqui senão na recordação daquelas horas.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

- Sim, titi.


Numa sala forrada a papel escuro, encontrámos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fundo dessa sombra, negrejavam dois óculos defumados. por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com o peito trespassado de espadas.

- Esta é a titi - disse-me o Sr. Matias. - É necessário gostar muito da titi... É necessário dizer sempre que sim à titi!

Lentamente, a custo, ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, duma frialdade de pedra; e logo a titi recuou enojada.

- Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo!

Assustado, com o beicinho já atremer, ergui os olhos para ela, murmurei:

- Sim, titi.

Eça de Queiroz, A Relíquia

segunda-feira, dezembro 18, 2006

"...intimidação cruel."









A fama, que pelas aldeias circunvizinhas apregoava o nome do missionário, atraíra imensa gente a escutar o sermão.
No fim de alguns minutos aparecia no púlpito a figura bem nutrida e pouco atrente do famigerado educador dos povos.
Fitou com sobranceria os ouvintes [...]
Enfim soltou o texto latino do sermão.
Seguiu-se nova pausa e principiou.
[...] As mais tétricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.
Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas ardentes, inúmeras torturas, a que o menor delito, tal como um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntária falta à missa, uma penitência esquecida, uma oração suprimida, arriscava as almas por toda a eternidade. Para cada pecado venial uma perspectiva de tormentos sem fim. o tribunal de Deus arvorado em tribunal do Santo Ofício, onde os autos de fé, os potros, e cavaletes aguardavam os delinquentes arrastados até ali; eis o resumo da oração. A fatal e desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu no pórtico do inferno, traçava-a este sobre os umbrais do tribunal do Eterno.
Na escultura do Cristo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto de um acusador, surgindo ali a pedir vingança, e não o do redentor sublime, a implorar e prometer perdão. E tudo isto de mistura com imprecações contra as modernas instituições sociais, contra a obra do século, contra os descobrimentos, contra a ciência, contra tudo em que se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e as ideias em sentido menos favorável à propaganda reaccionária.`
À medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; aumentava a desordem dos gestos e refinava a selvajaria das imagens.
Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditório, e principalmente da parte feminina dele, ia crescendo em choro manifesto, em gritos e alaridos. Cedo era já um angustioso clamor em toda a igreja.
Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Hainnish Mãe

A Hainnish gosta de escrever pequenas histórias, pelo menos enquanto não tem tempo para as grandes. Por vezes, o tempo é tão pouco que só lhe resta dar aos filhos um pequenino poema. Eles decoram-no logo, divertidos e orgulhosos.
A Minha Mãe

Debaixo da cama

Tenho um lobo mau.

E no meu armário

Vive um animal.

Mas no quarto ao lado

Dorme a minha mãe

Que guarda o meu sono

Como mais ninguém.


quinta-feira, dezembro 14, 2006



O absurdo máximo é viver e morrer! Ser e não ser! A vida é um sim que significa - não! O homem exclama: sim! Os ecos respondem-lhe: não!

Erguer e deitar abaixo! Fazer e desfazer! Deus, o que há de infantil na tua Obra!

O culto do Menino Deus! Deus é o Deus Menino. Lá está num altar da minha igreja, e tem o mundo na mão. Para quê? Para brincar com ele.

A esperança desespera, o amor odeia, a razão endoudece! É o desvario infantil que vem da Origem e trespassa todas as cousas...

E a Morte? O prazer com que ela mata certas pessoas! É uma criança a esfarrapar uma boneca.

A Criação é uma obra infantil, porque Deus é o Deus Menino. O velho barbudo de Israel é um pesadelo do Deserto.

Teixeira de Pascoaes, O Bailado,«Sombra e Pedra», VI a XI

sábado, dezembro 09, 2006

O velho, a carroça e o burro


Era uma vez um burrico, como qualquer burrico que dantes por aí andavam, de carga às costas ou a puxar pela carroça. Não tinha nome sequer, era o «arre burro», o «estupor do burro», quando não era pior.
Durante o dia carregava lenha, sacas de feijão ou de batata, seiras de azeitona. Ao fim do dia acartava com o dono adormecido, da taberna para casa. E se o dono era pesado!
Um dia, porém (tinha de haver um dia diferente, senão não havia história para contar) o burro zangou-se. Não era justo, caramba, era sempre ele quem puxava pela carroça, porque é que não havia ele, a partir de agora de ir sentado lá em cima?
E se bem o pensou, melhor o fez. Quando o dono saiu da taberna a trocar os passos e se quis apoiar à carroça, o jerico deu um passo em frente, o dono estatelou-se e ficou a dormir de borco na valeta.
'Agora é que é', disse o jerico. 'Vou fugir na carroça!'
E, libertando-se das rédeas, trepou para cima do veículo (hipomóvel, como diz o sr. Cabo da Guarda) : 'Arre burro', disse ele.
Mas, como os leitores todos já tinham previsto, a carroça não andou. E o burrico, desanimado, pensou que, bolas, não valia a pena dizer 'arre burro', porque o burro era ele. E usar o chicote, tá quieto! Não era parvo para bater em si mesmo.
'Bom, olha, o melhor mesmo é ir à pata, como sempre fui', decidiu.
E meteu os cascos ao caminho, cheirando os perfumes da noite e parando aqui e ali para tasquinhar uma ervinha.
Até hoje não voltou a casa.
Na aldeia toda a gente se ri quando vê passar o antigo dono a puxar ele próprio a carroça. Está bastante mais magro, dizem.
Moral desta história? Tem de ter uma? Então cá vai:
«Se não queres ter dono, tens de prescindir da carroça»
Feliz Natal!
Nota: Esta historinha é dedicada a todos os blogues por onde me passeio, mas muito especialmente aos autores do Blasfémias.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Intercidades



Intercidades
I
e
II

domingo, dezembro 03, 2006

Na senda dos utopistas

"...Na sala de aula do velho liceu a sua mesa alinhava-se numa fila lateral, havendo um espaço entre esta e a parede onde, a meia altura, se postavam as janelas amplas.
O padre Cristóvão gostava de colocar-se naquele espaço, em que a figura se lhe recortava contra a luz nas suas costas...
... ao aproximar-se o Natal, o padre Cristóvão narrava que José, vendo avolumar-se o ventre de Maria sabendo que para isso não dera causa, decidira fugir sorrateiramente de casa pela calada da noite - usava mesmo estas expressões feitas - mas eis que lhe saía oa caminho o arcanjo e o interpelava: «Ó José, o que vais fazer?» O «Ó» gritava-o o padre Cristóvão com todo o fôlego de acólito escandalizado, provocando nos alunos um riso incontido.
Era sábia, a intromissão daquele grito na narrativa. O padre tinha acabado de franquear os limites de um tabu ao reportar-se ainda que subentendidamente a uma prática sexual - naquele tempo estudava-se na Botânica o androceu e o gineceu das flores e os modos de polinização, mas na Zoologia omitia-se qualquer referência aos aparelhos reprodutores dos animais e não se falava em fecundação - por isso havia que fazer os alunos de imediato a excitação criada com o pequeno passo em terreno proíbido. Francamente, só mesmo um padre se podia permitir falar numa aula de sexualidade humana, ainda por cima na de Maria."
Sérgio de Sousa, Na senda dos utopistas, «Blow-up», Lisboa, 2001

sábado, novembro 25, 2006

Vimioso for ever

... El-Rei separou-se dos que o acompanhavam, e quando estava a alguma distância passaram por ele três homens. Travou-se uma briga entre esses três homens e Afonso VI, e este, embaraçadp pelas esporas, caiu de costas logo aos primeiros golpes, e foi ferido gravemente. Trouxeram-no em braços para o paço, onde esteve bastantes dias enfermo.
O que nesta noite, de que falamos aqui aconteceu ao rei, sucedia quase todas as noites a alguém que, pouco acompanhado ou pouco habituado a servir-se das armas, se atrevia a andar pelas ruas da cidade. Os homens, sobretudo os militares e os fidalgos da corte, julgavam quase um dever de honra fraternizar quando se encontravam de noite nas ruas, dando-se mutuamente algumas cutiladas...
Andrade Corvo, Um ano na corte, Porto, Lello & Irmão, s.d.

Tacci par lui-même

terça-feira, novembro 21, 2006

Como é diferente o amor em Portugal


Um duelo provocado pela bela Fornarina
*
Quando vinha trabalhar a Lisboa, a Bela Fornarina, cancionetista mundialmente conhecida, disputada e requestada por reis, engatava sempre com o meu grande amigo Abreu Loureiro, simpático rapaz, belo ginasta e galã de outros tempos. Havia, porém, um «ataché», o Dr. Cezar Pensador, uma criança a roçar pelos setenta e careca também, que tinha uma paixão assolapada pela beldade que lhe correspondia com galanteios esperançosos que mais o convenciam da sinceridade do seu amor. Apesar de andar ao «pingalim» do Abreu Loureiro, quando estava com o «cio» chegava a insultá-lo e a provocá-lo, pelo que se combinou um duelo de florete derimido no Velodromo de Palhavã de que o Abreu era empresário e a que assistiram os amigos e a própria Fornarina. Foi o Dr. Cezar admirável de coragem, batendo-se com denodo pela sua dama sendo «touché doucement» pelo antagonista umas dúzias de vezes o que convidava a assistência a desmanchar-se em risos. Findo o assalto, a Fornarina, de permeio, obrigou-os a reconciliarem-se no campo. Houve grande gaudio ao ser o moço apaixonado beijado na careca por ela própria. Acabou tudo no Suisso que, encerrando as portas, estava por conta do Abreu Loureiro.
Festa que nunca mais se esquece e que teve uma singular apoteose: uma cascata de champagne caindo em catadupas dos épicos seios da Bela Fornarina (cada vez estou mais mamífero) em pé em cima da mesa, onde estava sentado o Dr. Cezar e em cuja careca ia morrer o caudal já sem espuma por ter sido filtrado no serpentear do seu curso. Não te arrependas, querido amigo, de levares o papinho cheio.
Arnaldo Futscher Reys e Souza, Ergue a campa Vimioso, 1955

quinta-feira, novembro 16, 2006

...duas respostas.


Soubeste, claro, que estive em Ceuta, no ano passado. Um capricho? Não sei. O cheiro a sal, claro, e os mastros rangendo, o bater das velas... Sim, tudo isso. E também porque queria espaço, o largo.
Tu que viajaste, recordas-te dos teus primeiros dias no mar?
O que ainda sinto de cada vez que me vem à memória é espantosa beleza de toda a costa, as praias de areia... rosa? De que cor são as praias, tu que te dizes poeta? Da cor do pão branco, um pouco tostado pelo forno, concordas?
E os cheiros, aquele cheiro da madeira molhada, salgado e azedo a um tempo.
Dizem que embarquei secretamente. Não vale nem um encolher de ombros. Como se eu conseguisse dar dois passos sem um jesuíta na minha esteira. Hei-de falar-te dos jesuítas um dia, quando calhar.
Não: fui lá para ver com os meus próprios olhos. Um governador, seja da mais pequena das praças fortes, até ao Vice-Rei das Índias nunca consegue saber coisa nenhuma... Não, espera. Quando se pergunta qualquer coisa, há sempre duas respostas. Se não há, é porque perguntaste às pessoas erradas. Vê só um exemplo: porque é que as gentes do meu reino passam fome?
Pronto, bem sei, eu se passar é porque quero. Mas tu passas quer queiras quer não. Basta não chover este ano, o sol queimar ou o frio fazer cair a geada ou não sei o quê - o Rei não tem de perceber estas coisas mesquinhas, não é? - e pronto. Passas fome.
Há dias, em Sintra, na livraria do palácio entretive-me a estudar uns documentos do tempo do meu bisavô Manuel. Sabes que houve uma grande fome em Portugal, justamente quando ele se passeava com girafas e leopardos por Lisboa, numa carruagem folheada a oiro?
Quando da Mina e da Flandres vinham rios de oiro, o Tejo formigava de naus que traziam especiarias das Índias, o açúcar crescia na Madeira, nas cidades não havia pão.
E os mercadores reclamavam de El-Rei que os autorizasse a importar trigo e centeio, baratos, claro, para os vender caros cá dentro. E os concelhos reclamavam que o pouco que por cá crescia apodrecia nos celeiros porque ninguém lá o ia comprar...
Quem tinha razão, Luís Vaz? E para onde iam os rios de dinheiro que, diz-se nessas cartas, corriam para os nossos cofres?
Percebes porque tive de ir ao reino do Muley-Moluk ver com os meus próprios olhos porque abandonámos tantas praças e porque é que não podemos sustentar as que ainda temos?

quarta-feira, novembro 15, 2006

...aborto e horror da brava Natureza

A Senhora de Brabante Dizem as lendas que Satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.
Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo e lindo,
tirar de uma viola estranhas máguas,
pelas noites que os cravos vão abrindo...
Dizem mais que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes...
Satã cantara suas tranças pretas,
- e os seus olhos mais fundos que as raízes!
Mas a Duquesa é triste. - Oculta mágua
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...
O que é certo é que a pálida Senhora,
a transcendente Dama de Brabante,
tem um filho horroroso... e de quem cora
o pai, no escuro, passeando errante.
É um filho horroroso e jamais visto! -
Raquítico, enfezado, excepcional,
todo disforme, excêntrico, malquisto.
- pêlos de fera, e uivos de animal!
Parece irmão dos cerdos ou dos ursos,
aborto e horror da brava Natureza...
..............
Gomes Leal, Claridades do Sul

segunda-feira, novembro 13, 2006

segunda-feira, novembro 06, 2006

Memórias do cárcere: o alienista

...
Na minha infância, o nosso pai pensou em internar-me.
Aos 20 anos, qualquer médico escreveu num relatório que eu era um "psicopata constitucional". Foi o dr. Sobrinho, psiquiatra que dirigia a 20ª enfermaria do hospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques. O enfermeiro-chefe quando me surpreendia a ler, cá fora, nas escadas, ao crepúsculo, dizia-me: "Então você, durante o dia não lê, e agora que há pouca luz..." Sorria.
Como vês, o diagnóstico estava a confirmar-se. Eu ali, no uniforme do hospício, uma vestimenta que lembrava a dos prisioneiros dos campos de concentração nazis, estava a ler Hegel.
...
Sebastião Alba, Albas, /139/ quasi, 2003, pag. 73

domingo, novembro 05, 2006

De novo o Alba

Sebastião Alba era o pseudónimo de um vagabundo, alcoólico, sem bilhete de identidade e sem paciência para o ir tirar.
Do pai, professor que ensinava grego e latim aos mais pequeninos dos alunos, herdou o rigor. De quem a ascese da pobreza, esse querer ser um homeless e, apesar disso, sentir saudades do carinho das filhas, das gentes próximas, dos amigos que tinha e que perdia?
"Sem religião específica", diz Maria de Santa Cruz, "mas bebendo de todas a decantada superstição: 'São Francisco de Assis' ou a morena Santa Sara, dita 'egípcia' (gipsy) ..."
Sem - religião - específica:
(sem religião, especifica:)
"Lê hoje se puderes, o primeiro parágrafo de 'O mito de Sísifo', de Camus", escreve Sebastião Alba. "Meu pai teve, aos 35 anos, um amigo íntimo que era Major do Exército. Todas as noites se encontravam no mesmo café. Ele era alto e vigoroso; à mesa nunca deixava que ninguém pagasse as contas; trazia sempre no bolso, conta meu pai, rebuçados para as crianças.
Não casou, mas amava as mulheres. Nenhuma em particular. Um dia, com uma Walter 7.65, meteu uma bala na cabeça. Deixou um bilhete: 'estava farto de abotoar e desabotoar os botões do dolman'. Meu pai leu-o, estupefacto. Quase 50 anos depois, o meu velhote ainda diz que morrerá sem entender aquilo."
Albas, 233, quasi, 2003, pag. 135.

sábado, novembro 04, 2006

Sebastião Alba

Olvido Lleno de Memoria

Ao reconhecer que a sorte nos contemplou com alguma perfeição, devemos apagar-nos um pouco, para não humilharmos os outros.
"O que estás a dizer é muito grave, Alba?"
"É. Estabelece o limite entre nós e as pessoas vulgares."
"Temos que escorrer o nosso orgulho, mesmo que legítimo?"
"Escorrer, dizes bem. É uma espécie de lodo em que nos afundamos, dentro de nós."
"Leste isso em S. Francisco de Assis, Alba?"
Sebastião Alba, Albas, quasi, 2003, /181/ pag. 183

sexta-feira, outubro 27, 2006

Fé, Esperança e Caridade
Veio o Promotor fiscal com libello criminal accusatorio contra ella que lhe foi recebido, Si et in quantum, e a Ré o contestou por suas confissões, negando sempre o pacto que tinha feito com o Demonio, e por não vir com defeza foi lançada da com que podia vir, e ratificadas, e repetidas as testemunhas da justiça na fórma de direito se lhe fez a publicação de seus ditos, conforme ao estylo do santo Officio, e por não vir contra as ditas foi também lançada d'ellas, e guardados os termos de direito, e feitas as diligencias necessarias seu feito se processou, até final conclusão, sendo a Ré no decurso da sua causa por muitas vezes admoestada e com muita caridade da parte de Christo, Senhor Nosso, abrisse os olhos da alma, e tratasse só do remedio da sua salvação, confessando inteiramente suas culpas sem ella Ré o querer fazer. E sendo o seu processo visto na mesa do Santo Officio se assentou que ella pela prova da justiça, e suas confissões estava legitimamente convencida no segundo lapso do crime de feitiçaria, e por convicta, relapsa, revogante, e impenitente foi julgada e pronunciada, e depois notificada para no auto publico da Fé ouvir sua sentença, pela qual estava relaxada á justiça secular, e advertida tratasse do que convinha ao bem, e salvação de sua alma.

quinta-feira, outubro 26, 2006

E se, em vez do Ancião da Eternidade, Deus fosse mulher?
E negra, ainda por cima?
Alguém ficava realmente perturbado?

O Sonho do Zé Fernandes
Aquele que tem mais de mil nomes, o Ser dos Seres, claro que não tem representação. Tudo o que sobre Ele se diga é demasiado pobre e, por outro lado, é excessivo. Só os Mitos tentam dizer um ou outro desses nomes. Mas requere-se um Miguel Ângelo para os mostrar no tecto de uma capela. Ou um Eça de Queiroz num romance.
Toda a gente que já leu A Cidade e as Serras (1) se lembra da invasão do 202 pela fúria bibliófila do Jacinto.
"Não se abria um armário", diz o Zé Fernandes, "sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse hirta, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de estudos sociais, a porta do «water-closet!»
E num dia em que a saturação do livro é particularmente dolorosa, o Zé Fernandes sonha. Sonha que vai pelos Campos Elísios atapetados de livros, rodeados de prédios feitos de livros, cruzando pessoas cujo rosto são também livros abertos que a brisa folheia. Sobe uma escadaria monumental, também ela feita de livros e, narra o Zé Fernandes, "assim ascendi ao Paraíso".
E continua: sentado num trono de livros "o Criador lia e sorria."
"Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu ombro corruscante. O livro era brochado e de três francos... O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria."
De entre os mais de mil nomes do «Ansião da Eternidade», há um que eu particularmente venero: «Leitor de Voltaire».
(1) E a que não leu que comece já.

terça-feira, outubro 24, 2006

Sem título

segunda-feira, outubro 23, 2006


Mais um pirilampo.

domingo, outubro 22, 2006










O Pirilampocop e o Robotlamp.

sábado, outubro 21, 2006


Para a Ana e as suas amigas:
Estas são as primeiras versões.
Outras se seguirão, talvez o Robolampo
ou mesmo o Piricop.
Vão dando sugestões.




Eu, por ora, votaria neste. Que acham?

quarta-feira, outubro 18, 2006


O poeta de Alcácer-Quibir:

Que queres, afinal, que faça por ti? Para guerreiro, estás velho, Luís Vaz. Não tens cavalo, disseram-me que vendeste a armadura. Para comer. Passas fome? Muitas vezes?
Eu já tentei, mas não é a mesma coisa, pois não? Não conheces esta serra, há um pequenino mosteiro lá em cima, os monges capuchinhos vivem em grande parcimónia. Estive lá recolhido dois dias, tentei jejuar... não acreditas, mal souberam que era lá que eu estava, estragaram tudo. Uma caravana pelas veredas, capões e cabritos e os cozinheiros do palácio. E o meu confessor, Luís Gonçalves, com um cruxifixo e a água benta, a pensar que eu estava possesso do demónio. Pobres ermitas, há anos que não viam tanta comida, foi uma vergonha, o vinho de Carcavelos caiu-lhes na fraqueza, e imaginas, o velho abade a querer ser severo e nem se aguentava nas pernas...
Porque é que não me deixam, Luís Vaz? Porque é que o Rei não pode fazer o que quer? Nem sequer te posso nomear poeta do Reino, Vossa Magestade não deve preocupar-se com essas coisas comezinhas, já nomeámos D. Diogo Bernardes, que vem recomendado do Senhor D. Pero Carneiro, fidalgo de muito, que é preciso contentar.
Vossa Magestade tem é de presidir ao Conselho, tem é de receber a embaixada do Senhor D. João de Austria. E esta semana, temos de partir para Lisboa, Vossa Magestade não pode faltar ao solene te Deum em S. Roque... E eu só queria que me deixassem passar fome uns dias. O Rei nem isso pode ordenar?

domingo, outubro 15, 2006


Os Anjos de Alcácer-Quibir

Já te tinha visto, provavelmente lembras-te melhor do que eu. Há anos. No Paço da Ribeira, das raras vezes que por lá passei. Não gosto de Lisboa, sabes, desde que fizeram dela a capital... das pestes, da intriga, do dinheiro, dos negócios...
Sabes que ganhei ódio às moedas? Todo aquele oiro que tilinta aos nossos pés, toda aquela prata que cobre as nossas armaduras...
Mas era o dia da audiência, os candelabros estavam acesos e as filas e filas dos suplicantes brilhavam como uma Via Láctea de jóias. Que vinham eles pedir, como se fossem mendigos? Os usos tinham feito deste reino, percebes?, um reino de pedintes, de gente que suplica a esmola de um cargo, de uma tença, que ajoelhava diante de mim... Como... como se eu fosse Nosso Senhor e trouxesse no alforge uma carrada de milagres e pudesse distribuí-los assim, a meu bel prazer...
Eu caminhava com aqueles passos que me dizem representar a dignidade do Reino, o braço da minha Avó Catarina sustentava-me a inexperiência, como eu lhe sustentava os anos. E a cada instante nos detínhamos, o embaixador de meu primo Filipe, o Núncio, o meu primo Bragança, meu Tio Henrique... Em todos resplendecia o oiro, as pedras preciosas. Sabes o que é o explendor para os olhos de um menino? É o brilho que ofusca. Que cega. Quem deles era o mais luxuoso?
Só tu vestias pobremente. De negro, um velhudo baço, eras como se alguém tivesse feito um buraco no céu. Para onde dava esse buraco?
Só me atrvi a perguntar quando nos sentamos. A Avó Catarina não sabia. Foi D. Aleixo, o meu aio, quem sussurrou:
- Dizem que é poeta e que não tem onde cair de morto. Um boémio. Mas é bom guerreiro.
Foi assim que soube que tu existias.
Não é estranho que um soberano nem sequer saiba de um dos seus súbditos? E que importa se é um notável? Não achas que, Rei deste Reino, também as formigas me prestam vassalagem e que, a elas também, eu devo a protecção e guarida?
Que posso eu fazer pelos gafanhotos, pelos ratitos e pelos pardais do meu reino?
Que queres que eu faça por ti, Luís Vaz?

quinta-feira, outubro 12, 2006

Les
cigognes,
j'aimerais qu'elles
jouent avec
moi

mais Il les a placées
très haut
pour que
je n'y arrive pas.
Et donc:



Pour que je joue avec,
il m'a fait ça.
Donc:

quarta-feira, outubro 11, 2006

Ceci n'est pas une:
carrosse
bibliothèque
un fer à repasser non plus
Il faut que je gagne sans tricherie. Parce qu'on sait jamais.
Il se peut qu'il y ait quelqu'un qui tout peut et qui tout demande.
(Ceci n'est pas, mais il se pourrait qu'il le soit.)
Donc:


segunda-feira, outubro 09, 2006

O melro, d'entre a horta,
Dizia-lhe: «Bons-dias!»
E o velho padre cura
Não gostava daquelas cortesias.
Guerra Junqueiro, A velhice do Padre Eterno

sexta-feira, outubro 06, 2006

Gomes Leal, Claridades do Sul:

Mefistófles (ao longe)

O nosso bom arcebispo,
Perdeu a sobrepeliz,
Uma vez, em casa duma...
São coisas que o povo diz!